A ciência diz que, em meio ao cotidiano atribulado e a uma avalanche de notícias caóticas, ou seja, nossa atual rotina, o humor pode se tornar uma poderosa ferramenta contra o estresse diário. Pois o cartunista carioca André Dahmer nos fornece esse alívio cômico com seus traços certeiros e as sacadas provocativas dos desenhos que publica diariamente nas redes sociais, material consumido por 250 000 seguidores. Curtidas e comentários de uma gama de personalidades não param de pipocar — time de admiradores que inclui os humoristas Marcelo Adnet e Helio de La Peña, os cantores e compositores Otto e Letrux, o deputado Marcelo Freixo, a atriz Andréia Horta e o diretor de teatro Felipe Hirsch. “É um sujeito agudo, que vai direto ao ponto. E enxuto. Não coloca gordura nem no texto nem no desenho”, elogia o colega Jaguar, veterano com setenta anos de estrada no humor gráfico e 90 de vida. “Ele consegue ver coisas que não passam pela nossa cabeça”, acrescenta.
Afinado com os assuntos da atualidade, Dahmer desenhou um casal placidamente no cinema comendo pipoca e bolou a seguinte legenda: “Esse filme é tão triste que poderia ser ambientado no Brasil”. Em outra tirinha, de fina ironia, o paciente diz ao médico: “Dormi por quase cinquenta anos, provavelmente o racismo já foi superado”. O doutor some de cena e responde lá de longe: “Cuidado com suas ideias inovadoras, rapaz…”. Na cama, um homem pronto para dormir mantém os olhos vidrados no smartphone. A legenda ao lado alfineta: “As pessoas mais tristes do mundo em momento de lazer”. Parte desse acervo circulou em três exposições só em 2022: está atualmente em cartaz na Galeria Artur Fidalgo, em Copacabana, onde fica até o fim de julho. “O Dahmer é um artista que está perfeitamente inserido na produção contemporânea. Ele tem esse viés provocativo, que faz a gente refletir sobre o presente”, avalia a galerista Juliana Cintra, que deu ênfase na mostra justamente a trabalhos recheados de ironia.
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Nascido e criado em Botafogo, onde vive até hoje, o cartunista de 47 anos publicou sua primeira tirinha já na internet, nos primórdios das redes, em 2002. Era um trecho da série Malvados, uma das primeiras webcomics brasileiras. Três anos depois, foi convidado a exibir seu trabalho no extinto Jornal do Brasil, quando Ziraldo assumiu o caderno de cultura do diário. “Recebi a ligação e achei até que fosse trote de amigos”, recorda Dahmer, que estudou na Escola de Belas Artes da UFRJ após um conturbado colegial. Não parava um segundo, era indisciplinado, repetiu dois anos, foi expulso da escola, até que seus pais o matricularam no Centro de Arte Maria Teresa Vieira, e as notas subiram. “Um neurologista disse para minha mãe que eu tinha déficit de atenção e talvez não chegasse nem à faculdade”, lembra. “Hoje, passei a usar a indisciplina a meu favor. Só trabalho com gente muito organizada”, brinca o cartunista, que mais tarde passou a ocupar as páginas da Folha e do Globo.
Outra característica marcante em seu método de trabalho é observar bolhas que não são as suas. “Entro em páginas de bolsonaristas, dos antivacina, de radicais para ver o que estão dizendo. É adoecedor, mas faço isso cotidianamente”, revela. O Twitter é uma das suas fontes preferenciais. De manhã, começa a se informar por ali para se inteirar das notícias. Apesar de contar com um público enorme e fiel, as redes, para ele, são sobretudo um manancial de onde retira inspiração. “Aquilo não faz bem à saúde. Vídeos curtos começam sem você pedir e você fica na cama deitado, vendo um atrás do outro”, afirma o cartunista, pai de duas meninas, Lola, 6 anos, e Nina, 11. O próprio vício nas ferramentas digitais já ilustrou obras de Dahmer, que gosta de dar amplitude aos temas nos quais trabalha, sem ficar restrito a assuntos políticos e a crônicas de costumes. Na mesa de trabalho, não usa borracha. De dez desenhos, conta jogar fora nove, até chegar ao final. “Sou perfeccionista dentro do meu caos”, define.
A repercussão dos desenhos críticos de Dahmer o levou à Galeria Silvia Cintra, na Gávea, que promoveu uma exposição no fim do ano passado e o representa, expondo peças únicas, séries exclusivas e impressões em tecidos, como bandeiras. Em certa medida, esse barulho que vem ecoando do trabalho de Dahmer também dá prosseguimento a uma tradição cultural do Rio, berço ou casa de grandes nomes do nosso cartum — termo de origem britânica, usado pela primeira vez quando a revista Punch, que circulou de 1841 a 1992, publicou charges que imitavam os estudos para os afrescos do Palácio de Westminster, fazendo troça dos acontecimentos da política à época. Millôr Fernandes, Ziraldo, Aroeira, Ique, Reinaldo, Chico Caruso e o próprio Jaguar são alguns exemplos da vasta qualidade local. “Há setenta anos, quando comecei, as pessoas não entendiam muito bem quando eu dizia o que fazia”, rememora Jaguar. “Hoje temos muita história para contar, com uma qualidade técnica que não deixa a desejar a nenhum outro lugar do mundo.” Dahmer é um dos expoentes dessa talentosa e muito bem-humorada turma.
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Direto ao ponto
Dahmer segundo Dahmer
Infância
“Tenho déficit de atenção, e um neurologista disse para minha mãe que talvez eu não chegasse à faculdade”
Esporte
“Tive um hiato na vida. Fiquei sete anos sem desenhar, só surfando. Acho que estou bem, pois fiquei todo esse tempo dentro da água”
Educação
“O desenho deveria ser curricular até a faculdade. Assim como a música, ele ensina a enxergar e desperta um lado cognitivo muito importante”
Instagram
“Só mostram o lado bom. Tenho um amigo genial, o Botika (Bernardo Botkay, músico), que fez o @instatriste, com fotos de lixo e outras cenas”
Método
“Passei a usar a indisciplina a meu favor. Só trabalho com gente muito organizada”
Redes sociais
“Não fazem bem à saúde. Você perde um tempo danado de vida útil ali. As coisas mais gostosas são feitas sem o telefone”
Política
“A maioria do povo brasileiro é progressista, então temos de olhar para o lado bom. Estou otimista. Bolsonaro sairá no primeiro turno”