Protagonista de uma das cenas mais marcantes da teledramaturgia nacional – a morte de Odete Roitman (Beatriz Segall), em Vale Tudo -, Cássia Kis volta ao papel de Leila, a assassina da vilã, no próximo dia 20. É quando o canal Globoplay começa a reprisar a novela, uma trama atemporal de 1988 que, para Gilberto Braga, um de seus autores, botou em discussão “até que ponto vale a pena ser honesto no Brasil”. Em entrevista a VEJA RIO, Cássia lembra os bastidores da gravação do capítulo que parou o país, analisa a dificuldade para se manter sã em meio à quarentena imposta pela pandemia do coronavírus e fala sobre as três vezes em que foi assediada sexualmente ao longo de seus 63 anos de vida. “Fiquei traumatizada”.
Como está se sentindo neste longo período de isolamento? Estou exausta. Não tenho apoio nenhum, e minha casa é grande. Hoje fiz o almoço, mas ainda não limpei a cozinha. Daqui a pouco chega a hora do jantar e está tudo sujo ainda. Quando vejo, é quase meia-noite e não parei. Estou com três homens em casa. Homens, que comem muito. (Os filhos Joaquim Maria, de 25 anos, Pedro Gabriel, de 18, e Pedro Miguel, de 16). Tenho muita roupa para lavar, meu banheiro está uma zona, tem dez dias que não troco a roupa de cama. Fiquei séculos sem cortar a unha do pé e só fiz isso ontem. Estava um horror, parecia unha de mendigo. Ando muito triste também e às vezes penso como seria bom dormir 48 horas seguidas.
Acha que essa tristeza que anda sentindo tem relação direta com a quarentena? Claro que sim. Choro todos os dias e às vezes tenho a sensação de que estou testemunhando o fim do mundo, porque não dá para viver em paz sabendo que tem gente sem ter o que comer, sem acesso à saúde. E o pior é que temos um presidente que é um homem infantil, não amadureceu. Os absurdos que ele diz são coisas de criança, de homem mimado. O Bolsonaro tinha que levar uma surra de cinto da mãe dele.
Para você, é a imaturidade que faz com que o presidente aja desta forma e adote uma postura negacionista durante a pandemia? Sim. Quando eu via o Mandetta falando, até pensava: ‘O Brasil vai sair bem dessa história’. Tinha um comando ali, ele sabia o que fazia. Lidava com a ciência. Aí vem o Bolsonaro, filhinho da mamãe, birrento, querendo mostrar que ele é que manda. É inacreditável.
Exibida há mais de 30 anos, Vale Tudo retratou de forma mordaz a corrupção, a ganância e a falta de ética no Brasil. Este é um bom momento para reprisá-la, não? É importantíssima essa reprise. Tinha que passar no horário nobre da Globo para botar esses valores deturpados em discussão, para analisarmos o caráter do homem e a conduta do brasileiro.
Você interpretou a assassina da vilã da novela, num mistério que durou 13 dias e marcou a TV brasileira. Que lembranças você tem dos bastidores da gravação? E como foi o dia seguinte à exibição do capítulo que pôs fim à pergunta ‘Quem matou Odete Roitman’? Lembro que gravei a última sequência no dia mesmo em que foi ao ar. Seis da tarde estávamos no estúdio, e a cena foi transmitida duas horas depois. Caiu bem no dia do meu aniversário, 6 de janeiro. Matei a Odete Roitman e logo depois eu e a Beatriz Segall, que era um amor, festejamos com o resto elenco. Cantamos parabéns, comemos um bolinho. No dia seguinte, eu estava na capa de absolutamente todos os jornais do país, numa foto em que apontava uma arma em direção à câmera.
Ainda tem planos de escrever a sua biografia? Sim, tenho vários blocos de anotação aqui em casa, daqui a pouco tiro do papel. Tenho muita história para contar. Sou uma mulher que conhece com muita força as questões do assédio sexual e moral. Fui assediada sexualmente pela primeira vez aos 11 anos, pelo meu dentista. Depois fui assediada mais duas vezes, a mais recente na última década. Também era dentista, famoso. Não vou citar o nome porque vou acabar com a carreira dele, mas o denunciei para o próprio filho. Ele tinha que saber o que o pai fez. Fiquei traumatizada.
E o assédio moral? Sofri no trabalho e fora dele. Esse é terrível porque você mata as pessoas aos poucos, sem sujar as mãos. Me fizeram muito mal. No meu livro não vou xingar ninguém, só vou mostrar como nós podemos ser perigosos e cruéis.