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Buchecha: “Sou famoso, minha vida virou filme, mas claro que sofro racismo”

Às vésperas do lançamento do filme Nosso Sonho, sobre sua dupla com Claudinho, funkeiro conversou com VEJA RIO e revelou que vem aí uma peça sobre eles

Por Kamille Viola
Atualizado em 21 set 2023, 23h22 - Publicado em 20 set 2023, 16h11
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  • Dedicado à trajetória de uma das duplas mais queridas dos anos 90, o longa Nosso Sonho, de Eduardo Albergaria, chega nesta quinta (21) aos cinemas, trazendo Lucas Penteado e Juan Paiva na pele dos cantores. Embalado por sucessos como Só Love, Coisa de Cinema e a emblemática Nosso Sonho, que dá título ao filme, o longa promete emocionar com a história dos ex-ajudantes de pedreiro saídos de São Gonçalo que conquistaram o Brasil.

    Ansioso pela estreia do filme, Buchecha, que ainda não tinha assistido à cinebiografia, conversou com VEJA RIO sobre sua expectativa e as memórias que o longa despertou, além da saudade de Claudinho, morto há 21 anos em um acidente de carro. Na conversa, o cantor falou também sobre racismo, a polêmica que volta e meia ressurge em torno da letra de Nosso Sonho e os próximos planos, que incluem uma peça sobre a dupla e shows com o projeto Crias do Funk, em que ele se reúne com grandes nomes do gênero que andavam esquecidos.

    VEJA RIO: A realização do filme fez com que você revisitasse lembranças daquela época?

    Buchecha: Eu ainda não vi o filme, mas tenho certeza de que as partes mais tocantes da minha vida e da do Claudinho, e dos nossos familiares, amigos, enfim, pessoas que sempre conviveram conosco, vão tocar profundamente no meu íntimo, pelo fato de que foi a época das vacas magras. Agora me veio na memória nosso primeiro “salário” com a música, digamos assim. A gente tinha feito uma semana de shows, e, na segunda-feira, a gente foi receber o nosso primeiro cachê, que era o acúmulo da semana toda. Saímos da nossa casa de busão e fomos para o escritório para receber a nossa “bolada”. Quando o empresário botou aqueles dois malotes, cheios de nota de 1 real, de 10, de 5, mas que para nós era muito dinheiro, a gernte achou que estava rico. E, na volta, fomos para a favela de táxi. Era uma Brasília que, poxa, com todo respeito ao trabalho, estava até caidinha. Mas chegamos lá na comunidade  e tiramos uma onda, foi a nossa primeira vez dentro de um táxi. E aquilo foi muito forte para a gente. Pareceu que a gente estava no melhor carro do mundo, numa limusine. O depois disso possibilitou a gente morar numa casa melhor, mesmo na comunidade, fazer obras, e de poder estender essas benesses aos nossos familiares e amigos. Eu lembro que a gente parou no trailer que vendia uns hamburgões e essa “bolada” se esvaiu num passe de mágica, porque a gente ofereceu para os nossos amigos. A gente pôde usufruir coletivamente.

    O que você e Claudinho faziam antes de terem sucesso?

    Quando ganhamos o primeiro cachê, em 1992, a gente tinha 17 anos. No finalzinho de 1992 a gente começou a receber essa graninha, que era uma granona comparada ao que a gente recebia nos nossos trabalhos. A gente fazia de tudo um pouco. Eu comecei a trabalhar com carteira assinada só em 1994. Até então, em 92, ele era boiadeiro, tocava boi lá na comunidade, inclusive era o apelido dele, Claudinho Boiadeiro — no grande público ninguém sabe, mas para a gente lá no Salgueiro era assim. Eu vendia mariola, amendoim no busão no Centro da cidade e em Niterói. Depois, a gente começou a trabalhar numa obra de construção civil. Estavam fazendo um Brizolão (Ciep) lá e a gente era servente de obra na época em que começou o lance de cantar. Então era muito mais grana do que a gente já tinha visto a vida toda (risos). Isso foi muito bacana, porque a gente realmente mudou de patamar.

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    Como você se sente, quando pensa que tem um filme sobre a trajetória musical de vocês?

    Foi um passo muito grande, são poucos os artistas que podem usufruir de ter um longa em sua homenagem. E eu tenho esse privilégio em vida. Eu queria muito que o Claudinho estivesse aqui nesse momento, porque ele foi o grande responsável pela dupla, então seria muito justo. É uma pena não tê-lo aqui, mas eu tenho certeza de que ele está no céu vibrando também com tudo isso. É uma história muito bonita, que eu tenho certeza que vai emocionar as pessoas.

    Você imaginou que, mais de trinta anos depois, ainda teria sucesso, que ele iria durar?

    Não, não imaginava. Na verdade, a princípio eu encarei isso tudo como uma brincadeira. Eu morava na casa da minha tia quando ele inscreveu a gente num festival de rap, e veio com essa onda de formar a dupla. Tudo ideia do Claudinho. E ele falava: “Nós vamos fazer sucesso e tal”. Eu até dizia que ele era doidinho. Eu vejo ele como um profeta, que de fato viu se cumprirem todas as profecias, tudo aquilo que saía da boca dele, da alma dele. Mas, para mim, foi sempre uma surpresa, né? Cada conquista que a gente ia obtendo na carreira, conhecer a Xuxa, participar do programa dela — que era a nossa rainha a vida toda e continua sendo a minha —, Faustão, fazer sucesso, ter as nossas músicas regravadas e cantadas por grandes ídolos da MPB… Coisas que eu nunca imaginei. Cada conquista foi mexendo comigo. Eu arregalava os olhos e falava: “Caramba, isso está acontecendo!”. E o Claudinho já levava com menos seriedade, parecia que para ele era muito mais natural. A própria realização do filme e o seu lançamento, para mim isso tudo é uma grande surpresa. Com tantos artistas fenomenais no Brasil, alguém se interessou — “alguéns” — em reeditar a história de Claudinho e Buchecha.

    Embora o funk tenha tido vários momentos de sucesso, como aquele em que vocês estouraram e outros artistas também, ao mesmo tempo, ele sempre sofreu uma perseguição. A gente vê até hoje isso. Você acha que isso melhorou?

    As pessoas até falam: ‘Claudinho e Buchecha são os bons-moços do funk’, era o apelido da gente. Muito embora seja verdade que o funk era perseguido, que as pessoas atrelavam muitas coisas negativas ele, eu confesso que eu e o Claudinho conseguimos furar essa bolha, quebrar os tabus do preconceito que havia contra o funk. Muito pela forma positiva das nossas aparições. Toda vez que a gente aparecia na televisão, até muito mais por conta do Claudinho, era sempre com sorriso no rosto, um brilho no olhar, e a forma de falar sempre com muito carinho. Então as pessoas sempre abraçavam o trabalho da dupla de forma bem diferente do que elas faziam com o restante do funk. O nosso segmento realmente ele sofria — ele sofre até hoje — mas eu acho que eu e o Claudinho, a gente conseguiu fazer com que as pessoas olhassem de forma diferente para ele. O saudoso MC Marcinho, que acabou de nos deixar, também. Eu e Claudinho, a gente conseguiu dar seguimento, mostrar esse trabalho e continuar por muito tempo levantando essa bandeira, falando de amor. Todos os MCs tiveram a sua importância, os funks mais politizados têm importância. Tem gente que pensa que a gente nunca falou de protesto. Se buscar a discografia da dupla, vai ver que tem muita coisa ali que a gente reclama, de problemas sociais e tudo mais. Mas era de uma forma muito leve, que acabava passando despercebida e parecia que estava falando de outra coisa. A gente conseguiu fazer de uma forma poética tudo o que a gente fez. E as pessoas entenderam isso e aderiram, e têm aderido até hoje. Tanto que o meu trabalho ainda é bem consistente.

    Volta e meia retorna na internet a polêmica da música Nosso Sonho (por causa do trecho que fala: “Seus doze aninhos permitem somente um olhar”). Pode explicar essa letra?

    Olha, eu já estou cansado de explicar. O que acontece: hoje eu já estou com quase 50 anos, soa muito estranho um cara da minha idade falar (cantarola): “Seus 12 aninhos permitem somente um olhar”. Eu entendo, para a galera que não acompanhou a história da dupla e vê um cara de 50 anos cantando isso. Mas a música nao foi lançada agora. Eu comecei a fazer essa música em 1990, para a minha esposa, Rosana, mãe dos meus filhos maravilhosos: Ceejay, que é o mais velho, tá com 24 anos, e a Giulie, que hoje tem 19, vai fazer 20 em setembro. Comecei fazendo pra ela, na época ela tinha 12, e eu tinha 15. São três anos de diferença. Para um menino de 15 anos, não é nada de mais. Mas, para um cara de 50, realmente soa estranho. As pessoas nas redes sociais falam assim: “Ah, por que você nao muda a letra?”. Gente, a música é a música. A gente tem que usar de licença poética e imaginar, vai tua memória lá para quando eu tinha 15 anos e ela, 12. Não tem nada a ver. As pessoas às vezes fazem um julgamento errado. A música é uma das mais fortes da dupla, tanto que ela dá título ao filme. É linda, com uma melodia maravilhosa, uma história maravilhosa. Sò para tirar essa sombra, eu comecei ela fazendo para a minha esposa, quando eu tinha 15 anos e ela 12, só que ela não estava completa. Aí fui fazer um show no Parque Araruama (São João de Meriti), na Baixada Fluminense, e tinha uma menina que estendeu as mãos e não conseguia tocar (na gente). Então eu fui mudando a letra, peguei um dicionário — porque eu não só uso o dicionário para me orientar em relação às palavras, eu casei com o “pai dos burros”. Aí reconstruí a música. Tinha começado em 1990, quando a gente lançou eu nem pensei nessa questão da idade. Uma vez eu encontrei o Lulu Santos, e ele falou assim: “Cara, você conseguiu descrever o sentimento de todo artista que sobe ao palco pra fazer um show. Porque as pessoas da frente vao ter acesso, vao conseguir tocar no ídolo. Mas as que estão lá atrás não vão conseguir. Então elas ficam estendendo a mão, querendo tocar.” Nosso sonho não vai terminar, porque a fã um dia vai tocar no ídolo, e o ídolo toca na fã, através das suas músicas, dos seus gestos, da sua arte. É uma história muito bonita, e tem a declaração dele (Lulu), dizendo que é música que ele gostaria de ter composto, para mim isso é um motivo de orgulho.

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    Antigamente, os artistas de funk falavam muito de ser da comunidade, da favela, mas hoje se fala muito também do racismo, que no passado a gente via mais o rap falando. Como você vê essas discussões sobre o tema hoje, você acompanha?

    Acompanho, impossível não acompanhar. Não sou muito voz o tempo todo com isso, mas é claro, eu também sou vítima, meus filhos são, minha esposa, minha mãe, meus irmãos, meus amigos. A maioria das pessoas que fazem parte do meu convívio é vítima também de todo esse racismo. Graças a Deus a gente tem essas grandes personalidades para falar, porque é um assunto que a gente vem sofrendo há muito tempo. E, para ser sincero, vejo muita falácia e pouca solução. Vou citar o futebol, porque eu vejo muito. A gente vê jogadores que vêm de outros países para cá jogar, torcedores também, e xingam os jogadores de macacos. Aí vai lá, paga uma fiança de valor ínfimo e está liberado. Se fala muito, mas se combate pouco com a eficácia que precisava. A gente já vive isso há séculos. Quando eu vejo uma campanha séria, eu engrosso o coro. Mas não sou muito de falar, prefiro combater do meu jeito, conversar com os meus em off, bolar sempre estratégias para combater isso no dia a dia. Porque é impossível você ver uma preta, um preto não sofrer isso. Cada um reage do seu jeito, mas é dor, e é a dor que todos nós (negros) sentimos. A gente tem que combater, mas combater na lei, porque não adianta só ficar falando, falando, falando. Fica aqui um alerta para as nossas autoridades, para combater, para ouvir o que a gente tem a dizer, porque a gente sente na pele. Por mais que, por ser artista e ter uma condição boa e tal, isso diminua. Diminui? Diminui, mas a gente sofre também. Já acontece de eu entrar num elevador, e a pessoa não reconhecer e sair. E aí, quando entraram mais pessoas e me reconheceram, a pessoa: “Ah, é o buchecha.” Entra e fica mais simpática. Fica nítido que é por causa da cor da pele. Isso machuca. Fico imaginando as pessoas passando isso todo dia. Enquanto a gente está conversando aqui, tem alguém sofrendo racismo, e isso é muito duro.

    E quais os próximos planos?

    Eu ainda não parei para elaborar, mas está para sair uma peça também, falando sobre a dupla. E o que é mais legal é que o meu filho, Ceejay, que é ator e dublador e cantor, e a minha filha, que tem as mesmas qualidades, eles vão fazer os papéis principais. Eles estão no filme e na peca de teatro também. A gente ainda não parou ainda para acertar os detalhes, é embrionário, mas eu estou muito feliz porque vou tê-los numa obra onde eu vou me ver. É impossível não me emocionar mais do que eu já tenho me emocionado, com tudo que tem acontecido. E, para além disso, eu tenho um projeto chamado Crias do Funk, onde eu resgato MCs que estavam esquecidos. É um absurdo falar isso, mas de fato é, é a verdade. E eu estou trazendo luz de novo para esses grandes ícones do funk, que estavam trabalhando em outros empregos. E isso doeu tanto no meu coração. O primeiro convite que eu fiz a eles foi até no Rock in Rio (2022), foi meu quarto rock in rio, e eles nunca tinham pisado lá, nem para curtir os shows. Eu cansei de olhar para o lado muitas vezes e não ver os meus iguais. Os caras que começaram comigo, que me fizeram gostar de funk, ajudaram a construir esse grande pilar que é o funk hoje no nosso cenário musical. A partir do Rock in Rio, eu falei: ‘Esses caras tem que aparecer.’ E vou dar um spoiler: eles também participaram de uma cena no filme. É a única coisa que eu sei, não sei de mais nada. Porque eles (a equipe do longa) falaram que ia ter uma cena que era homenagem ao funk, e eu disse: “Então eu quero meus amigos comigo”. Eu quero trazê-los comigo para tudo que eu puder, para eles voltarem a aparecer. A gente lançou uma música chamada Batata de Marechal, está disponível no canal Crias do Funk, fez alguns programas de TV, e eles muito felizes, eu também. Porque realmente eles já estavam desistindo. E é isso, se eu puder ajudar, quero me fazer sempre presente nesse segmento: o funk que fala de amor, que ajudou a quebrar barreiras, que destrói muros e constrói pontes. É nisso que eu acredito, para a gente cada vez mais transitar nos lugares e falar com todos os povos.

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