“Vai ser uma aventura e tanto”. Com um frio na barriga, entramos, minha família e eu, naquele voo da United Airlines rumo a Chicago e à nova vida. Era 27 de Fevereiro. Pousamos na manhã seguinte e o frio agora era na barriga, na ponta dos dedos, nas orelhas e no nariz. Chicago, a “windy city”, nos recebeu friamente: -7ºC.
Nos dirigimos a um apartamento corporativo impessoal, onde ficaríamos hospedados até finalmente encontrar um lar. Em 02 de Março comecei no novo emprego em uma agência de publicidade com quase 1000 funcionários. Em poucas horas fui apresentado a umas 100 pessoas. “This is Smith”, “Hi, I’m Sarah”, “Mike, how’s it going?”. Apertei umas 100 mãos e lavei a minha várias vezes, mas a verdade é que ,àquela altura, o Covid-19 ainda parecia um problema distante.
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Entre 2 e 12 de Março o nível geral de paranoia cresceu rapidamente em Chicago. Nesse período fui apresentado a vários clientes e já era comum notar uma certa inabilidade geral em relação aos protocolos de interação física. Uns diziam “Dane-se, aperte minha mão”, uns diziam ser “melhor evitar contato manual” oferecendo o cotovelo, outros davam tchauzinhos preventivos. Foi numa irônica Sexta-Feira 13 que tudo mudou. Todas as agências de publicidade da cidade entraram em regime de home-office. No meu caso, “apartamento-corporativo-office”. Em um piscar de olhos, todos os quase 1000 colaboradores estavam 100% aptos a trabalhar remotamente.
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Meu “lar-agência” fica nos arredores do Centro da cidade e, portanto, é um excelente termômetro para medir o nível movimentação nas ruas. Nos primeiros dias, as calçadas viviam lotadas de homens de terno e mulheres de vestidos corporativos. Hoje, 20 dias depois, as ruas estão absolutamente desertas. Sair de casa é permitido, mas desencorajado. Recentemente saí duas vezes.
Na primeira, fui andando até a uma agência do governo em busca de um documento importante, o Social Security Number (uma espécie de CPF), que deveria ter chegado pelos correios mas jamais chegou. O local estava fechado, sem previsão de abertura. No caminho vi pouca gente nas ruas, quase todos trabalhadores braçais, operários, alguns de capacete, gente simples que segue trabalhando duro. As lojas estavam todas fechadas, os restaurantes exibiam cartazes informando que estavam abertos servir comida “pra viagem” ou fazer delivery. Os bancos estavam todos abertos – dias antes, abri uma conta de um deles e a bancária passava álcool em gel no teclado sempre que me pedia que colocasse algum novo dado.
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Na segunda vez, saímos em família porque a casa estava virando um hospício com duas crianças trancadas. O cenário foi assustador: as ruas da terceira maior cidade da maior potência do planeta estavam desertas. A padaria na esquina de casa, que dias atrás fazia entregas, estava fechada. Assim como todas as filiais do Starbuck’s. Museus, escolas, atrações, tudo fechado. Trens e ônibus circulavam vazios. Wallgreens, exceção, seguia aberto, mas com muitas prateleiras vazias. Os serviços de delivery agora levam 48 horas para entregar e muitos itens estão em falta.
Escrevo às 16h do dia 23 de Março e, neste momento, Illinois é o 7º estado com mais casos de Covid-19 nos EUA: são 1049 (assustadores 296 nas últimas 24 horas). São 9 mortos. O Estado tem 2500 leitos de UTI e 1106 ainda estão vagos. Há 1600 respiradores disponíveis. Em geral sinto que os americanos estão levando o Covid-19 a sério e apreensivos com os dias que temos pela frente.
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O fantasma da Itália assombra a América, sobretudo agora que o epicentro da Pandemia está em Nova Iorque, que concentra 5% de todos os casos do planeta. Muitas interrogações, poucas certezas: o que será do país sem sistema de saúde público? Os hospitais darão conta da demanda? Qual a extensão do dano, tanto em termos de saúde pública quanto em termos econômicos? Muito se fala, mas pouco se sabe.
Trancado em meu apartamento corporativo, aguardo a tempestade passar sonhando em um dia finalmente poder sentir que moro em Chicago.”
*Adriano Matos é publicitário e trabalha na agência Leo Burnett Chicago