Em frente à Rua Augusta, 379, nos primeiros dias de um ano que já nasce repleto de obrigações, “no mínimo, ser melhor que o anterior”, dentro da padaria em que vinha comer sanduíche de rosbife com um santista que me apresentou Racionais e Emicida, fecho os olhos na tentativa de reencaixar os tempos enquanto espero a comida ficar pronta. Pois é, às vezes algumas datas trocam de lugar no espaço à esquerda desse peito tricolor. Meu anticomputador, coitado, é mesmo um sentimental.
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É 2014: moro no Rio de Janeiro e trabalho em São Paulo, não tenho mais pai, mas agora voo sem medo, seguro o ansiolítico mas também a dramaturgia que vem com ele. Dois filhos e uma separação depois, minha pele finalmente começa a me hospedar com mais doçura. Vai ter Copa e Ubatuba até mais tarde. Não, espera, calendário errado, é mais para a frente, acelera, isso já foi. Sete a um, reeleição da Dilma, escolas ocupadas, impeachment, misoginia, hashtags feministas, guerra na Síria, refugiados no mar, Brexit, Trump, Marielle assassinada, Bolsonaro eleito, Bolsonaro inelegível, civilização restabelecida, queda nos feminicídios, um planeta inteiro imunizado.
Não, calma, agora passou muito. Volta um pouco. Volta mais. Pandemia, George Floyd, Carrefour, Pantanal em chamas, fim do Trump, lives, Hey Jude do Caetano, jogo da Champions interrompido por caso de racismo. Tá quase. 2021, comecinho, vai devagar… Aí, janeiro, para.
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Pronto, chegamos, agora, sim, mesma página, realidade compartilhada na medida do possível, bem-vindo ao presente, é tudo o que temos. Estamos todos de máscara no seu cenário? O projeto da vacina gratuita e democrática é um desejo comum? Então fica aí, nosso filme é o mesmo, senta, puxa uma cadeira, meu jogo da vida saúda o teu jogo da vida, agora lava as mãos e tenta respirar com esperança. Respirou? Ótimo, parabéns, você chegou até aqui. Aproveita, muita gente não conseguiu — e nem dá para dizer que foi seleção natural. Vamos tirar o Darwin dessa, a questão é bem mais política do que biológica. Agora é agradecer pelo oxigênio e voltar ao trabalho, de preferência aglomerando certo, com três ou quatro Homo sapiens que te escutam enquanto você fala sobre a sua infância e perguntam se você chegou bem.
Onde? Não importa. Sabe o Guimarães Rosa? O lance do real ser justamente na travessia? Então… É isso. Ah, prazer, esqueci de me apresentar, me chamo… Quer saber? Isso de nome já era, não importa mais. Sou uma “coronal” sobrevivente, uma “quarentener infinitum” ouvindo um Lennon e McCartney do Revolver sobre ser o amor de alguém que pode ser exatamente o seu alguém, olha que sorte… Estamos no mesmo barco, leitor, a luta prescinde de rosto e até de CPF. Ou desembarcamos todos na Terra Prometida, ou não há motivos para salvar assassinos, concorda?
Agora, sério… Quem você se tornou depois dos últimos dez meses de Google Meet e álcool em gel? As aulas de educação moral e cívica mostraram algum resultado? Entendo… Também não tenho tanta certeza se avancei alguma fase no videogame evolutivo. Talvez não. Talvez ainda precise voltar algumas casas. Cinco, dez, vai depender do departamento.
Por outro lado, não posso dizer que não parei para ouvir algumas pessoas. Porque eu parei. Parei e em muitas vezes até fechei os olhos, para ver se reaprendia com menos técnica e mais amadorismo. Depois de 2020 decidi que inteligente mesmo é o sujeito que sabe amar. É essa a cultura e a erudição que eu quero no meu currículo. Amor e ciência, pode ser, 2021? E igualdade. De cor, de classe, de gênero, de direitos.
Meu primogênito manda uma mensagem para o meu celular. Foi bem na prova da Unicamp. Minha amiga Martha manda outra em seguida: “Acho que os gêmeos seguram pelo menos mais uma semana. E Max cresceu 400 gramas”.
Estou numa padaria da Rua Augusta cuja vista me exibe umas fotos sem álbum, uns frames sem filme, essa espécie de viga de lembranças aleatórias que nos sustentam mais ou menos sem autorização. O tempo passou. O pão e o suco chegaram. Feliz ano-novo, cariocas.