Maria Ribeiro: “Pertenço à gente das artes. Do verbo. Do erro”
Porta pantográfica do elevador do Palacete Veiga leva atriz e colunista a voltar no tempo e se encontrar no presente
Era uma porta pantográfica. Mas isso eu só descobri bem depois. Até os 6 anos de idade, quando finalmente fui capaz de juntar sílabas — e fazer delas palavras —, ainda era, como eu dizia, um elevador “de muito antes”. Que, apesar de diferente e meio assustador, me levaria pra cobertura mais legal do Rio de Janeiro: a casa da minha avó Marilu, com aquele mar que era só dela. Um azul tão triste quanto bonito.
Minha avó era uma figura enigmática. Quieta, independente e elegante, vivia entre obras de arte e um dálmata chamado Roque, por quem, aliás, ela era loucamente apaixonada — o único ser por quem eu a via derramar-se em afagos efusivos. Sua intimidade restringia-se a ele. No mais, livros e quadros lhe faziam companhia.
Menina, eu sofria por não vê-la encaixada nas figuras que eu via nas novelas — aquelas velhinhas fofas que cozinhavam e davam colo pra crianças como eu. Ávidas por calor e encantamento.
Hoje, no entanto, a vejo com extrema admiração. Maria Luiza viu sua filha de 28 anos cometer suicídio, e cuidou, com os sentimentos possíveis, dos três netos que minha tia deixou. Dos quais um, mais tarde, também tiraria a própria vida.
O assunto foi tabu por toda a minha juventude. Meu pai, que passou a ser filho único, nunca abriu a boca pra falar uma única palavra da lacuna que se abriu em sua história. O silêncio era parte da minha família, e eu o encarava com os mesmos medo e estranhamento que dedicava ao bairro em que ela morava.
“O assunto foi tabu por toda a minha juventude. Meu pai, que passou a ser filho único, nunca abriu a boca pra falar uma única palavra da lacuna que se abriu em sua história”
Copacabana, pra mim, era uma cidade à parte. Um lugar de pessoas que não caberiam em outros bairros, um CEP onde a vida era mais densa, e o tempo, estendido. Lá, os restaurantes pareciam “de época”: Le Bec Fin, A Polonesa, Le Mazot, Shirley, Nino, Azumi. Praticamente uma Feira da Providência, onde cada rua abrigava a cozinha de um país e uma possibilidade de existência — todas estranhas ao meu Jardim Botânico acolhedor e cheio de floresta.
Eu frequentava aquelas mesas um tanto deslocada, mas igualmente curiosa. Como turista em terra estranha, ficava fascinada e ao mesmo tempo apreensiva, como se o mistério no ar entre Leme e Ipanema contivesse uma ameaça invisível, que apenas muito mais tarde compreendi: a morte.
Um dia, comecei a fazer aulas de violão. O professor, Marcelo, que morava na Rua Paula Freitas, segue até hoje sendo uma das figuras mais importantes da minha vida, além de ser o responsável por me apresentar outra Copacabana. Moraes Moreira, Caetano Veloso e Gilberto Gil mudaram as lentes com que eu via aquelas ruas, colocando, pra sempre, a música como parceira segura e infalível, capaz de transformar qualquer endereço em um porto familiar. Uma cidadania definitiva.
Ali, começava a sensação que até então não era capaz de identificar, e que agora se apresenta evidente: pertenço à gente das artes. Do verbo. Do erro. Do transbordamento. Da inadequação. E do apego a casas e objetos. Como a porta pantográfica.
O elevador “de muito antes” voltou a fazer parte dos meus dias recentemente. Assim como Machado de Assis em Dom Casmurro, que colocou seu protagonista restaurando a adolescência na velhice, através de uma pintura de parede, minha mãe foi morar no mesmo Palacete Veiga da minha meninice.
A mesma vista, o mesmo mar, e a sensação iminente de perda, de urgência e de mudanças. Fachadas “de muito antes” que agora chegam cada vez mais perto, e que hoje enfrento sem dor.