Maria Ribeiro: “No jogo da vida, cabe a nós encontrar beleza nas faltas”
Ao completar 48 anos, vivendo a chegada da menopausa e a doença da mãe, colunista e atriz se sente recebendo passaporte definitivo para a vida adulta
Escrevo esta coluna no dia em que completo 48 anos. Não que o leitor tenha algo a ver com isso. Não tem. De todo modo, como a crônica não deixa de ser uma espécie de jornal da vida miúda — e esta é, ou deveria ser, a base de todos nós —, arrisco aqui o confete autorreferente. Vai que alguém se identifica com um trecho ou outro.
Desde que comecei a ler esse tipo de texto, e lá se vão mais de trinta anos, aprendi a prestar atenção em coisas que antes me eram absolutamente imperceptíveis. Um passarinho do Rubem Braga, uma terça-feira do Paulo Mendes Campos, um lance de futebol descrito pelo Xico Sá.
A crônica é uma espécie de lupa sobre um fato absolutamente desimportante para o jornalismo convencional, e que, no entanto, faz um enorme sentido pra quem escreve. E, se tudo der certo, pra quem lê. E, como no fundo, somos todos muito parecidos — às vezes calha de as palavras terem alguma serventia para alguém.
Estou ficando velha. E se isso não acontece da noite para o dia, há anos, no entanto, em que o tempo parece agir com passos de maratonista. Com asas nos pés.
A inesperada fragilidade da minha mãe — que de uma hora pra outra passou a precisar dos cuidados de uma criança —, a chegada da menopausa e todo o impacto que ela traz, tudo isso deixou 2023 com cara de passaporte definitivo para a vida adulta. Com A maiúsculo e em caixa-alta. “Não vai ser fácil”, poderia ser o carimbo timbrado do documento imaginário. Não vai, leitor. Não mesmo. E tudo bem. São as regras do jogo. Cabe a nós encontrarmos beleza nas faltas. Nas faltas, nos medos, e no abismo do outro. Como existir amando corpos sob os quais não temos controle? Como lidar com a dependência de seres humanos tão frágeis quanto a gente?
“Minha mãe, de alguma forma, sou eu. Quando ela cai, caio também. Nos últimos três meses, ficamos, as duas, muito perto da morte. E fui tomada por um pavor absoluto”
Comecei a sentir isso quando tive filhos. Primeiro, aos 27, e, depois, aos 34. Mais tarde, quando perdi meu pai, três anos depois do nascimento do meu segundo rebento, entendi que aquela, sim, era a verdadeira entrada no segundo tempo do jogo. A perda dos pais. De fato, senti muito a despedida do meu tricolor. Mas, embora o plural seja no masculino, pai e mãe ocupam lugares completamente diferentes na língua do espelho. Pelo menos, aqui. No que entendo como reflexo. Como identidade.
Minha mãe, de alguma forma, sou eu. Quando ela cai, caio também. Nos últimos três meses, ficamos, as duas, muito perto da morte. E fui tomada por um pavor absoluto. Será que disse a ela tudo o que poderia ter dito? Será que a beijei o suficiente? Por que ficamos tão longe por tanto tempo?
Não sei. Talvez não saiba nunca. A vida é o que é. O fato é que tive — que estou tendo — o benefício da prorrogação. Marina, minha outra eu, está em casa. Depois de alguns intermináveis meses no hospital. Essa volta — que é uma volta pra casa e também pra vida — cada vez mais se aproxima de um reencontro. Ou de um encontro.
Chego aos 48 anos de idade jogando biriba com a mulher da minha vida. Que quase perdi duas vezes. Chego falando de livros, piano, fé, álbuns, orquídeas, cabelos. Chego com chocolates e ampulhetas. Meus filhos e eu. Minha mãe e eu. Minha morte e eu.
O tempo.
A finitude.
A vida adulta.
A enorme vida miúda, com os anos possíveis, as relações remendadas, e a alegria do perdão.