Até algum tempo atrás, pouco se falava sobre o transgênero — aquele que não se reconhece no sexo atribuído no nascimento. Uma enxurrada de filmes, séries e novelas vem jogando luz no tema, que era restrito a um universo cercado de tabus. Neste novo cenário, aumentou também o número de pessoas em busca de mudança do sexo. O cineasta Gabriel Meinberg*, de 25 anos, conta como se descobriu um homem trans e revela as dores e alegrias de seu processo de transição, retratado no projeto Torna-te Quem Tu És, da fotógrafa Lívia Kessedjian.
“Durante a recuperação da mastectomia, cirurgia de retirada das mamas, eu não podia nem levantar os braços. Mesmo precisando de ajuda para tudo, um sentimento de liberdade tomou conta de mim. Eu tinha começado a tomar hormônios masculinos um ano antes. A testosterona age rápido. A voz foi ficando rouca, e surgiram pelos no meu rosto. Parei de menstruar, e pipocaram espinhas. Era como se estivesse passando de novo pela puberdade, mas a cada dia me sentia mais confiante. Até minha mãe, que veio para o Rio me ajudar no pós-operatório, mudou. Ela não raro se referia a mim no feminino. Um dia, antes de eu entrar no banho, ela me olhou e disse: “Você fica melhor sem peito”.
O caminho para me descobrir trans foi tortuoso. Nasci Gabriela e cresci em Teresópolis, onde todo mundo se conhece. Estudei em colégio católico e, antes de dormir, rezava a Deus para acordar menino. Quando abria os olhos e percebia que nada havia mudado, aquele sentimento de angústia me invadia. A hora de me vestir para a aula era tensa: o uniforme tinha um avental, e eu chorava, não queria colocar. Cheguei a roubar roupas do meu irmão caçula. Num Carnaval, minha mãe me deixou escolher a fantasia, desde que fosse um vestido. Fui de Hércules. Eu sentia um desconforto enorme com meu corpo, mas não entendia o que realmente me incomodava. Na adolescência, tinha seios grandes, e aquilo me atrapalhava muito, porque adorava jogar handebol e futsal. Fiz uma cirurgia de redução de mamas e achei que isso resolveria meus problemas, mas logo vi que nada havia mudado. A angústia só crescia. Foi nessa época que a minha irmã, cinco anos mais velha, se assumiu lésbica. Minha mãe, aparentemente liberal, surtou. O clima em casa ficou horrível. E isso me travou mais ainda.
Um marco na minha vida foi a entrada na faculdade de cinema da PUC, aos 18 anos. Vim morar no Rio com a minha irmã e conheci muita gente, principalmente pessoas LGBT. Eu já tinha beijado alguns garotos, mas meu sentimento era sempre de decepção. Quando fiquei com uma menina pela primeira vez achei bem mais interessante, mas nunca me senti lésbica, soava errado. Comecei a buscar conteúdo LGBT no YouTube, até que um dia topei com um vídeo chamado Como Me Descobri um Homem Trans, em que um canadense relatava sua infância e o processo de mudança de sexo. Depois de assistir ao filme, tudo fez sentido: ‘Cara, sou eu’. Minha avó morreu, e, ao vê-la no caixão, me bateu um pânico. Se eu morresse naquele dia, as pessoas se lembrariam de mim como uma mulher. O pensamento me assombrou. Procurei, enfim, uma psicóloga e decidi passar pela transição, que começou com o tratamento hormonal. Comprei as primeiras doses, após uma batelada de exames, e guardei — queria estar com tudo engatilhado antes de falar com meus pais, para não desistir. Meu coração estava na boca, mas eles receberam bem a notícia.
Tenho consciência da minha condição de privilegiado: sou sócio de uma empresa, branco, pertenço à classe média da Zona Sul carioca. Sabia que não ia ser expulso de casa, sofrer violência na rua ou perder o emprego. No entanto, pago plano de saúde e não tenho direito a fazer exames considerados femininos. Não consigo tirar passaporte. Descobri que tenho de me alistar no Exército e pagar multa por não ter feito isso aos 18 anos. Não tenho coragem de ir ao ginecologista, por medo das reações. Por enquanto, não penso em fazer outra intervenção cirúrgica. Mantenho hoje uma relação muito melhor com meu lado feminino. O registro do processo nas fotos da Lívia também foi muito importante para a construção da minha autoestima. Tenho um grupo de amigos trans, em que um apoia o outro, e moro com a minha namorada e um cachorro. Se pudesse escolher, não teria nascido de outro jeito. Adoro minhas cicatrizes e tenho muito orgulho de carregar no corpo um símbolo de resistência.”
Em depoimento a Carol Zappa