O mar não estava para o peixe Chico Buarque quando ele se autoexilou na Itália com a então mulher, Marieta Severo, e a pequena filha Silvia, naquele 1969 em que o Brasil estava sob o chumbo da ditadura militar. O compositor voltaria a pisar em solo nacional pouco mais de um ano depois — amigos haviam lhe dito que a situação não estava tão braba assim. Um dia, Chico foi ao trabalho, estacionou o carro no edifício-garagem Menezes Côrtes, no Centro do Rio, e caminhou pela Avenida Rio Branco até o estúdio da gravadora Philips, onde registrou o disco Construção.
O clássico da MPB, que chega aos cinquenta anos em 2021, foi responsável por influenciar toda uma geração com letras pautadas pela forte vertente crítica e inaugurou um novo patamar na carreira do cantor tricolor. Além de um pulo musical na sua história, a coleção o alçou a outro degrau comercial: estava ali seu primeiro sucesso de vendas. “Seus álbuns iniciais ficavam entre 20 000 e 30 000”, lembra Roberto Menescal, diretor artístico da Philips à época. “Com Construção, ele bateu 100 000 unidades vendidas em uma semana e alcançou 400 000.”
Um dos mais importantes compositores da bossa nova, ao lado de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, Menescal costuma ser parabenizado pela produção do disco, mas diz que se exime da “culpa”. “Ele já veio com praticamente tudo pronto da Itália. O principal foi dar ao Chico o ambiente adequado para gravar”, conta. Para isso, foi contratado Antônio José Waghabi Filho, mais conhecido como Magro, fundador do quarteto MPB-4, que assinou a direção musical, fez os arranjos vocais e cuidou da regência da orquestra de uns sessenta integrantes.
O estúdio ficou uma loucura, aquele povo todo, mais o Chico, o MPB-4… “Aí um técnico novinho apertou um botão sem querer e apagou tudo o que a orquestra já tinha gravado”, recorda Menescal. Mesmo com o prejuízo à vista, não teve jeito: eles chamaram os músicos de volta e regravaram tudo. “Peguei LPs que a companhia estava produzindo, da Elis, da Gal, e tirei um pouquinho de dinheiro do orçamento, na moita. O André Midani (presidente da companhia na época) só tomou conhecimento depois e acho que o próprio Chico nunca soube”, diz o diretor artístico.
Os obstáculos continuaram mesmo após as gravações. A canção-título, com sua letra extensa, rimas em proparoxítonas e seis minutos e 24 segundos de duração, virou um desafio para a companhia e o diretor emplacarem. Eles precisaram negociar intensamente com as rádios, já que era de praxe reproduzir músicas de no máximo três minutos — Construção tinha quase sete. Em algumas emissoras, pediam até para cortar um trecho. Os executivos bateram o pé. “Insisti muito, fui de porta em porta, mandei imprimir a letra inteira na contracapa do LP. Achava que deveria ser ouvida na íntegra”, conta Menescal. Ele estava certo.
A canção estourou nas rádios e o LP, composto entre o exílio italiano de Chico e o regresso ao Brasil, começou a vender 10 000 unidades por dia, levando a Philips a contratar duas gravadoras concorrentes para prensá-las e atender à demanda das lojas. “Até soube que o Chico disse, em entrevistas, que a gravadora pagou para que a faixa fosse executada, mas não é verdade”, acrescenta o diretor artístico, que também teve de ir a Brasília para conseguir a liberação da trilha.
Apesar de toda a habilidade de Chico em combater a vigilância do regime pelas entrelinhas da poesia, nem todas as faixas de Construção sobreviveram na forma original. Os agentes da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão do regime militar que vigorou entre 1972 e 1988, exigiram uma série de ajustes nas letras. Cordão, a faixa número 5 do disco, trazia, segundo os censores, um “protesto contra a ordem vigente” e o verso “Nas grades do coração” tinha “sentido dúbio”. Foi substituído por “As portas do coração”.
Em Samba de Orly, feita com Toquinho e Vinicius, outros trechos sofreram adaptações: “Pela omissão” deu lugar a “Pela duração”, “Um tanto forçada” virou “Dessa temporada”. Usando a ironia para criticar a situação repressiva em que os brasileiros viviam, Deus Lhe Pague acabou completamente proibida de início. O documento, que consta nos registros do Arquivo Nacional, traz a observação: “Deixa de ser liberada por a mesma conter certas palavras não adequadas à boa letra”.
Ao contrário do que se especula até hoje, a capa com Chico de camisa estampada, bigode, mão na cintura não contém nenhuma crítica à ditadura, segundo o próprio autor da imagem. “Eu ia muito à casa dele, na Lagoa, depois que voltou da Itália, jogar botão, falar do Fluminense”, relata Carlos Leonam, dono de um acervo com inúmeras imagens pouco conhecidas daqueles dias. “Uma vez, levei a máquina e tirei umas fotos, essa é uma delas.” O flagra descontraído se tornaria capa de um dos mais elogiados álbuns de Chico, premiado com o terceiro lugar da lista dos melhores da música brasileira na revista Rolling Stone — os dois primeiros são Acabou Chorare, dos Novos Baianos, e Tropicália ou Panis et Circenses, de vários artistas.
“É difícil falar em melhor disco, mas os anos 1970 marcam o ápice da produção dele. Tanto é que Construção nunca saiu de catálogo, nem pode”, avalia o produtor Ricardo Moreira, responsável pelo relançamento em CD pela gravadora Universal, a antiga Philips. Hoje, o cantor é representado pela Biscoito Fino, que na pandemia disponibilizou seu último show, Caravanas, de 2017, pelo YouTube.
De acordo com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), Chico tem 529 canções e 1 189 gravações cadastradas no banco de dados da instituição. No ranking das mais interpretadas pelos colegas, aparece uma das pérolas de Construção, a faixa de número 8, Valsinha — “Um dia ele chegou tão diferente / Do seu jeito de sempre chegar…”. Trata-se do quarto trabalho com Vinicius de Moraes, que entregou a melodia ao parceiro para que ele fizesse a letra. Vinicius elogiou o resultado, mas propôs alterações. Queria trocar o verso “Pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar” por “Pra seu grande espanto, disse vamos nos amar”. Chico respondeu: “‘Convidou-a para rodar’, eu gosto muito, poeta, deixa ficar… Se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense e o tesão para a transa final” — e assim ficou.
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O registro das mensagens foi compilado pelo jornalista Wagner Homem no livro Histórias de Canções — Chico Buarque, que também ganhou uma edição dedicada a Vinicius. Os planos para a comemoração do cinquentenário da trilha incluíam um musical, que teve as negociações interrompidas pela pandemia, sempre ela, o que não apaga a importância da data. “O disco é uma combinação perfeita de inspiração com técnica, com uma sonoridade moderna que continua atual mesmo tantos anos após o lançamento”, resume o músico Pedro Luís, fã da obra e historiador informal da MPB. Um marco que não cala.