Aos 90 anos e já vacinada contra a Covid-19, Elza Soares revela uma vitalidade invejável, aquela que a fez cravar a marca de 121 discos em mais de seis décadas de carreira. Sua biografia é recheada de grandes reviravoltas e tragédias, como a morte de quatro filhos e o conturbado casamento com o jogador Garrincha (1933-1983), declaradamente o grande amor de sua vida – “apesar de virar outra pessoa quando bebia”. “Só quem convive com um alcoólatra sabe a dor que é”, desabafa.
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O mais recente capítulo de sua trajetória é a renovação de seu público, agora tomado de jovens fãs, que a incansável artista tem alcançado por meio de lives nas redes sociais durante a pandemia ó foram até agora umas três dezenas. “Ganhei 250 000 seguidores só no Instagram, é mole?”, comemora Elza, às voltas com um novo DVD, previsto para este ano.
Eleita artista do milênio pela BBC de Londres em 2000 e vencedora do Grammy de melhor álbum de MPB em 2016, ela não tem nenhum pendor para viver de passado. Atualmente, é disputada por nomes da nova cena musical brasileira, que querem ver sua voz potente no palco. “Estou no auge. My name is now”, falou a VEJA RIO, na entrevista que concedeu por telefone de seu apartamento, em Copacabana.
No fim de 2020, em uma gravação com o rapper Flavio Renegado, no Teatro Municipal de São Paulo, a senhora chorou no palco. A esta altura, o que ainda a emociona?
Quando a música é boa, sinto uma emoção muito forte, poderosa. É quase como um orgasmo.
A senhora também fez recentes trabalhos com artistas como o rapper BNegão, a Mc Rebecca e a banda BaianaSystem. Essas parcerias envolvem um choque de gerações?
Na verdade, elas me ajudam a não parar no tempo. É muito importante para mim manter a juventude, e isso não diz respeito somente à estética. Vivo em busca de novidades, nasci com essa curiosidade. Meu rádio, por exemplo, está sempre ligado. Vou acompanhando tudo o que surge.
Como avalia o atual cenário da música brasileira?
A nova safra que hoje está aí é de alto nível, maravilhosa. Temos ótimos representantes de todos os ritmos.
A pandemia não impediu que seu 2020 fosse bastante produtivo, com a transmissão de lives e a disputa de mais um Grammy. Parar de trabalhar seria o fim?
Eu gosto e preciso trabalhar. Se parar, não como. Sobre esse negócio de lives, achei bom à beça. Quero continuar fazendo.
Com uma média de 1 milhão de ouvintes nas plataformas de streaming por mês, a senhora é considerada a mais bem-sucedida cantora da sua geração no universo digital. Foi difícil fazer essa transição?
A forma de distribuição do conteúdo pode ter mudado, mas a essência do que faço continua a mesma. É importante saber o que as pessoas apreciam, dar o que elas querem ouvir, mas sempre buscando o que você, o artista, gosta de fazer também. Uma coisa não funciona sem a outra.
A senhora já enfrentou pobreza, fome, violência doméstica, racismo e a morte precoce de filhos. Em algum momento caiu em depressão?
Sei que não é fácil, mas eu não tenho medo de nada, e isso ajuda. Vou subindo os degraus, dizendo “dá licença” e indo em frente. É claro que tenho fraquezas, inseguranças, e já fiquei muito triste. Mas deprimida, jamais. Sou uma pessoa simples. Fico feliz da vida comendo um jilozinho, um ovinho frito, curtindo a minha neta.
A senhora nunca escondeu os procedimentos estéticos que realizou. Faria mais?
Mas é lógico, meu bem. Está sobrando, a gente tira. Está faltando, a gente bota. Plástica faz parte da minha vida. Se for necessário, faço mais uma. Quero me sentir bonita.
Às vésperas do Natal, a senhora postou uma foto do Garrincha. Foi mesmo o homem que mais amou, como costuma dizer?
Sim. Mané foi o grande amor da minha vida. Eu passei a odiar bebida depois de tudo o que vivi com ele, não gosto nem de sentir o cheiro. Só quem convive com um alcoólatra sabe a dor que é. A pessoa muda depois que bebe, se transforma. Mas não quero ficar falando disso não, cara.
O país vem registrando taxas de feminicídio cada vez mais altas. Acompanha o assunto?
Claro, e estou horrorizada. A violência contra a mulher vem de longe, só que era muito mais difícil denunciar. Não tínhamos tantos canais, não conseguíamos gritar. Apesar de a situação continuar crítica, hoje é mais fácil se manifestar. Recebo nas minhas redes vários relatos de mulheres denunciando a violência que sofrem e digo: estou com vocês e sempre estarei. Contem comigo.
Por que incorporou em sua música a luta contra a violência doméstica e outros direitos das mulheres?
É uma forma de chamar atenção para o problema. O artista tem o microfone na mão. E as pessoas precisam entender de uma vez por todas que a mulher tem o direito de fazer o que ela quiser. Uma faixa de um disco meu, Deus É Mulher, diz assim: “Quero comer você, quero dar para você”. É um direito nosso e ninguém tem nada a ver com isso.
A população LGBTQIA+ a tem como ícone. De onde vem essa relação?
Carrego a bandeira LGBT há muito tempo. Quando era casada com o Mané, botava as louças mais incríveis na mesa para a gente beber um chazinho com uma turma LGBT maravilhosa, que me ajudou muito no início da carreira. Vivo cercada deles. Não consigo entender a violência contra a turma LGBT. Por que isso?
Em 2020, o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, excluiu o nome de vários artistas da lista de heróis negros do país — inclusive o seu —,dizendo que as homenagens passariam a ser póstumas. Como recebeu a notícia?
Sinceramente, falando de coração, para mim tanto faz, como tanto fez. Bobeira. Homenagem póstuma? Meu bem, estou viva! E, se a pandemia deixar, ainda vou lançar meu novo DVD neste ano. Não paro, estou sempre no agora. My name is now.