Em 1984, com o cenário político marcado pelo suprapartidarismo e pelo protagonismo da sociedade na luta pela redemocratização, os artistas deram as caras e emprestaram criatividade e a própria imagem à campanha das Diretas Já, movimento popular que pedia a volta das eleições diretas no Brasil. Hoje lembrada como a Musa das Diretas, Fafá de Belém diz que, à época, foi ignorada pelos partidos que organizavam os comícios e até chamada de “pé frio”. Ainda assim, ela não se arrepende do passado. “Em um dos comícios, uma senhora da organização me barrou e disse que eu não estava autorizada a subir. Me revoltei e comecei a gritar: ‘É o meu nome e a minha música que estão no cartaz à frente desse palanque. Pode olhar. Fafá de Belém e Menestrel das Alagoas”.
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Fafá foi presença constante nos palanques, participando de 32 comícios e emocionando multidões ao cantar o Hino Nacional Brasileiro. A canção Menestrel das Alagoas, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, se tornou ícone das Diretas Já ao homenagear um dos precursores da defesa pelas eleições diretas, Teotônio Vilela, senador alagoano morto em decorrência de um câncer em novembro de 1983. Com arranjo de Wagner Tiso a música traz a voz do homenageado em seus segundos finais. “É a melodia do povo. Sinto-me dentro dela porque venho fazendo de minha vida o roteiro da liberdade”.
A cantora relata que, em agosto de 1983, o senador soube da gravação e quis escutá-la. “Quando ele visitou o estúdio, demos altas risadas e lembro dele falar ‘Minha filha, nossas gargalhadas podem fazer o chão deste país tremer”‘, conta Fafá. A morte do alagoano serviu de incentivo para que a artista organizasse um showmício em tributo ao político em Olinda, Pernambuco. “Menestrel das Alagoas” foi lançada nesse evento, no dia 4 de janeiro de 1984, com benção de Dom Helder Câmara. Segundo ela, quando a voz do senador surgiu nas caixas de som, bandeiras de partidos de esquerda e faixas pedindo eleições diretas se levantaram em homenagem.
À época repórter especial da Folha de S.Paulo, o jornalista Ricardo Kotscho ganhou o apelido de Cronista das Diretas por Ulysses Guimarães, então presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e figura central da defesa à eleição por voto popular. Ele lembra que o comício em frente ao Pacaembu, em 25 de novembro de 1983, dia da morte de Teotônio, foi um ponto de inflexão. Apesar da unanimidade no apoio à democracia, os políticos entravam em conflito pelo protagonismo, mas, naquele dia, o comportamento dos partidos se transformou.
“Houve vários momentos de tensão naquele dia. O pessoal do PT (Partidos dos Trabalhadores) vaiava o PMDB, mas aí veio a notícia da morte do Teotônio Vilela, um político que havia se tornado um grande líder pela redemocratização do país. FHC (Fernando Henrique Cardoso, senador de São Paulo), que era do PMDB, foi o único não vaiado porque anunciou o falecimento. Pararam as vaias e as brigas. A partir daquele momento, os comícios ficaram mais uniformes”, relembra Kotscho.
Fafá de Belém afirma que continuou sendo esnobada pelo PMDB mesmo com a comoção causada no showmício em homenagem a Teotônio Vilela. No dia 12 de janeiro de 1984, em Curitiba, uma celebração do movimento lançou oficialmente a campanha Diretas Já e ela não foi convidada. Logo depois, no dia 25 daquele mês, os mesmos responsáveis cortaram seu nome do comício da Praça de Sé, em São Paulo, alegando que Fafá não fazia parte de nenhum movimento democrático. Quem a levou para o encontro foi o presidente Lula. “Lula era meu amigo e usava minha casa para reuniões do PT em momentos de crise. Nesse dia, foi ele quem pegou na minha mão e disse ‘Você vai!’. Nós fomos, eu cantei e iniciei a tradição, que se repetiria em diversos outros comícios, de lançar uma pomba branca. A ideia foi do Henfil (jornalista e cartunista que apoiava ativamente a campanha), que era genial”, rememora a cantora.
Fafá recorda ainda que, quando a emenda Dante de Oliveira não passou na votação parlamentar, surgiu um boato falso sobre sua filiação ao PT e a taxaram de azarada. Em uma participação na TV Cultura, cortaram o sinal do canal na hora da sua performance, atitude que, para a paraense, foi um ato de “silenciamento e vergonha”. No entanto, a presença de Fafá e de outros artistas na campanha é reconhecida como essencial para a popularização das Diretas Já!.
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O ex-ministro das Comunicações e ex-deputado Miro Teixeira ressalta que a mobilização artística foi fundamental para formar o pensamento político da população e incentivar a ocupação das ruas em busca da eleição direta para presidente em 1983 e 1984. “Foi uma questão de transmissão de empatia e confiança por figuras que eram admiradas pelo povo e se dispuseram a entrar na militância política. Eles não foram buscar notoriedade. Eram pessoas que entregaram sua visibilidade a serviço do povo. Pela palavra do poeta, pela voz da cantora e até nos intervalos dos teatros, a proclamação era lutar pela democracia”, vaticina.
Ricardo Kotscho, o “Cronista das Diretas”, não foi o único a receber um título pela influência na campanha. O repórter publicou, em 1984, o livro Explode um Novo Brasil, sobre o movimento democrático, com prefácio de Ulysses Guimarães. “Ele me entregou um manuscrito, foi um um dos maiores presentes da minha vida. No texto, Ulysses me intitula cronista oficial da campanha e aponta Osmar Santos como ‘Locutor das Diretas’ e Fafá de Belém a ‘Cantora das Diretas’”.
Cantada nos palanques por Fafá, a letra de “Menestrel de Alagoas” se refere a um “menestrel que espalha esperança”, um “saltimbanco falando em rebelião”, alguém que “fala a língua do povo”. O historiador Daniel Cantinelli Sevillano, doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, categorizou as expressões musicais do processo de redemocratização em dois momentos: utopia e distopia.
“No primeiro período, de 1980 até 1985, temos a transição democrática com aquele sonho do que poderia acontecer com as Diretas Já. Ainda com o baque da derrota da emenda Dante de Oliveira, a eleição do Tancredo Neves, mesmo indireta, traz um momento de utopia, um sentimento de que a ditadura terminou. No entanto, a morte de Tancredo é um ponto de virada. O segundo momento apresenta, no governo Sarney, uma distopia. Aquela esperança deu lugar a uma sensação de que o que poderia dar certo, não deu”, resume o professor.
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O jornalista Oscar Pilagallo, que trabalhou na Folha de S.Paulo durante as Diretas, destacou que “Menestrel de Alagoas” é uma das canções que representam a esperança por tempos melhores de uma sociedade desgastada pela ditadura. Segundo o repórter, os artistas simplesmente compunham e já levavam músicas ao público nos palanques, disseminando positividade sobre o resultado da emenda Dante de Oliveira. Ele comentou como a campanha nasceu no Congresso e dominou a sociedade nos seus vários segmentos, inclusive o dos artistas que, quando chegaram, tornaram tudo muito potente e criativo.
No dia 25 de janeiro de 1984, artistas e intelectuais se reuniram na rua Augusta, em São Paulo, para lançar a cor amarela como símbolo oficial da campanha nacional por eleições diretas. O manifesto foi lido por Esther Góes, atriz e presidente do Sindicato dos Artistas do Estado na época. “Queremos ser cidadãos livres e livremente decidir aquilo a que temos direito. Queremos usar o amarelo como bem nos aprouver. O amarelo símbolo, o amarelo gema, o amarelo das flores sem medo, o amarelo da oriental sabedoria, o girassol amarelo que nos guia, tinge e alimenta. (…) Queremos assumir a dívida da nossa cidadania cassada, acuada, rejeitada, posta para escanteio. (…) Presidente quem escolhe é a gente. Que seja feita a nossa vontade. (…) É preciso sair às ruas. Usar roupas amarelas, bandeiras, bandeirolas, lençóis nas sacadas, fitas nos automóveis. Inundar o país com a cor da campanha pelas eleições livres e diretas para presidente da República”, dizia o texto que inspirou o título do livro O Girassol Que Nos Tinge, de Oscar Pilagallo.
“A contribuição de atores, músicos, poetas, escritores e artistas em geral foi espontânea e não obedecia a um comando único. Não houve uma centralização dos artistas a mando de um partido ou político. Valia a máxima de Milton Nascimento e Fernando Brant: ‘Todo artista tem de ir aonde o povo está’, explica Pilagallo.
Em cima dos palanques e ao lado de políticos e representantes de movimentos sociais, os artistas deram força à campanha que, apesar de derrotada em abril 1984, foi pivô para o início de um “longo período de obediência às regras democráticas na República Brasileira”, nas palavras de Oscar Pilagallo. Já Kotscho, que cobriu quase todos aqueles comícios, salienta que o da Candelária, no Rio, se destacou pela dificuldade em acompanhar o povo nas ruas devido à quantidade de pessoas. Segundo historiadores e jornais da época, a passeata reuniu mais de um milhão de brasileiros. “Eu gostava de ficar lá embaixo, mas foi impossível. Não parava de chegar gente, era um mar de pessoas e ninguém sabia exatamente quantas tinham. A Candelária foi totalmente envolvida pela população. Então esse dia foi uma cobertura mais política, de bastidores em cima do palanque”, recorda Kotscho.
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Ele acrescenta: “Acabei pegando um diálogo de Tancredo Neves com Ulysses Guimarães. Tancredo virou para ele e disse: “Ulysses, impressionante, nunca vi tanta gente na minha vida. Como vamos fazer depois para administrar esse povo”? Então o doutor Ulysses respondeu: Fica tranquilo! O bom é o povo na rua. Isso é que muda a história’. E ali se desenhava um novo capítulo para o Brasil.
*Eduarda Farias, estudante de Jornalismo da PUC-Rio, com orientação de professores da universidade e revisão final de Veja Rio.