A única vez na vida em que me levantei de uma mesa — assim, no sentido de deixar claro que não poderia dividir aquele espaço com alguém — foi em 2018. E, não, ninguém havia defendido a existência de um partido nazista. Mas o sentimento de horror ao ouvir uma prima exaltar o então candidato — e agora presidente — Jair Bolsonaro, já muito à vontade em seu discurso homofóbico, racista e antidemocrático, me impediu, pela primeira vez, de permanecer “em família”. De tentar argumentar. Compor. Relativizar.
A gente tem origem, mas também tem norte. E, na barbárie, convém optar por um dos dois. Agir com método. Redefinir o conceito de grupo. Dedicar-se a séries (mais do que a Natais). Lutar nos lugares certos.
Não costumo fugir de discussão. Acho o verbo, inclusive, bonito. E não só bonito, mas também esperançoso. Romântico. Quando perco a vontade de dizer o que penso, perco também o amor. E não há nada que me deixe mais triste. Desistir de gente com quem já fiz planos. Desistir do afeto. Desistir.
Quantas pessoas você perdeu nos últimos quatro anos? Quantas pessoas descobriu que nunca teve? De quais laços se despediu?
Em tempos difíceis, qualquer amarração pode virar nó de marinheiro, dizia meu avô. Tenho tentado não abrir mão de nenhum. Mesmo os tortos, os errados, os difíceis, os trabalhosos… mesmo os mais fugidios.
Porque 2018 — de novo ele — já havia me tirado o suficiente. E, como se não bastasse a desilusão que veio de herança com aqueles 57 milhões de votos, ao desgoverno do país somaram-se a Covid, o negacionismo, as falas brutas, o amargor.
E agora o Moïse.
“O.k., você não quer mais. Nem lembrar da canção. Nem ser machista. Também não quero. Grande coisa. Um africano foi morto na praia”
Não vi o vídeo. Não vou ver. Sou covarde demais pra isso. Sou mãe demais pra isso. Sou egoísta demais pra isso. Alienada demais pra isso.
Esta coluna, por exemplo, era sobre o Chico Buarque deixar de cantar uma canção que compusera pra Nara Leão e que hoje considera machista — ou seja, sobre um não assunto.
De modo que este fevereiro, pra mim, só tem Quartas-Feiras de Cinzas. Que este fevereiro é todo anti-Carnaval. Não há segundas, nem terças, nem quintas, nem sextas, e muito menos fins de semana. Sábados e domingos não vieram trabalhar este mês. Levantaram-se da mesa. Foram pra Portugal.
O Brasil é mesmo para os fortes. Quando a gente acha que chegou ao fundo da tristeza, vem o espancamento de um africano na Barra da Tijuca. Quando a gente acha que chegou ao auge da desolação, vem um podcaster e relativiza o Holocausto. E eu não fiz mais do que dois posts no Instagram.
Instagram, esse obituário de todos os dias.
Instagram, esse CEP de achados e perdidos.
Em 2012, quando postei minha primeira foto naquela, até ali, relativamente recente, rede social — um retrato em preto e branco do meu filho mais velho —, eu não tinha a menor ideia do que aquela janela no meu aparelho de telefone significaria nos anos seguintes. Eu não sabia do Moïse. Do Bolsonaro. Da pandemia. Eu não sabia de nada.
Quer dizer, talvez ainda não saiba — não sei — e só agora tenha entendido que não importa. O pacto é dormir e acordar, se entorpecer com dramaturgia, escolher as mesas das quais se levantar. O pacto é seguir.
Porque talvez só Hamlet tenha feito a única interrogação que preste. Quer continuar sendo? Aguenta continuar sendo? Então, durma, trabalhe, fique triste, feliz, pule Carnaval em abril, acompanhe a Copa em novembro, siga em frente, vire à esquerda, pare nos sinais vermelhos.
Um africano morreu na nossa praia.
Deseja continuar de onde parou?, me pergunta a tevê, prestativa, a respeito da série que eu comecei a ver ontem. E que é incrível, aliás. Euphoria.
Deseja continuar?
Não sei, respondo, legendando a mim mesma, como se a palavra escrita, mesmo sendo de absoluta indefinição, fosse capaz de me fazer encarar o espelho. Não sei. Continuar de onde parei? Como, se não tenho país? Como, se fevereiro não existe?
Chico, pode continuar cantando Com Açúcar, com Afeto. É uma letra machista? É. Como você deve ter sido. Como eu fui, ainda sou, serei muitas vezes — ainda que não queira. O.k., você não quer mais. Nem lembrar da canção. Nem ser machista.
Também não quero. Grande coisa. Um africano foi morto na praia.
A única vez na vida em que me levantei de uma mesa foi em 2018. De um mês, em 2022.
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