‘Diariamente, eu recebo mensagens da comunidade mangueirense perguntando: quando vamos voltar? Não tenho a resposta. Desde o início da quarentena, eu já era cético em relação à realização do Carnaval em 2021. Dizem que vai acontecer em julho, mas nada é certo em um momento como este. Até agora, com tantas dúvidas no ar sobre vacinação e sobre o fim da pandemia, não há um plano concreto para a festa. Gostaria muito que fosse ainda neste ano, é claro, mas me acostumei à ideia de que podemos ir direto para 2022. Viver nesse compasso de espera é angustiante.
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A essa altura do campeonato, estaríamos no auge da temporada, às vésperas do desfile, lotados de turistas nas quadras. Todo mundo na Mangueira está sentindo falta, não só da avenida, mas também do dinheiro no bolso que deixa de entrar. O Carnaval é uma atividade econômica vital, inclusive para os pequenos negócios. Do bar no entorno dos ensaios à tia que vende bala na porta, todo mundo está sendo fortemente impactado. Em fevereiro, vou morrer de saudade da alegria dessa celebração, carioca e popular em sua essência. Vou passar em casa, sozinho, os dias do Carnaval que, agora, estão só no calendário.
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O meu trabalho é fazer Carnaval, pensar o Carnaval, e não apenas executá-lo. Então passo por um longo
processo de gestação de ideias. No isolamento, sempre soube que teria de criar um desfile sem saber quando ele seria apresentado. Fiquei rascunhando, lendo, e isso me levou a imaginar uma série de possibilidades para o enredo da Mangueira. No princípio, ocorreu-me um tema ligado à cultura nordestina, depois cogitei falar sobre negritude ou apresentar uma biografia única, tradicional.
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Aí o tempo foi passando e eu continuava privado do convívio com a comunidade, triste. Quando apertava aquela dor no peito, colocava um disco do Cartola, ouvia uns sambas da escola, os clássicos cantados pelo Jamelão. Percebi, na frieza da reclusão, que a poesia do Cartola e a voz do Jamelão podem trazer a Mangueira para perto da gente de uma forma mais intensa. Para completar, 2021 é o ano do centenário do Mestre Delegado. E os centenários do Cartola, em 2008, e do Jamelão, em 2013, não tinham sido celebrados. Ali estava o enredo: uma homenagem aos três.
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Para os mangueirenses, foi uma alegria. Vamos mostrar aos moradores da favela que eles também são grandes poetas, grandes cantores e dançarinos, como foram Agenor, José e Laurindo ó que viriam a se tornar Cartola, Jamelão e Delegado. Uso o nome comum deles no enredo justamente para frisar esta ideia de que é possível ascender à fama e alcançar a excelência partindo dali. É uma realidade que, muitas vezes, não se acredita. Nos últimos anos, tenho tentado fazer dos meus enredos um espelho do Brasil. Algo que futuramente, num olhar a distância, possa ser a lembrança do que era preciso ser dito no momento em que essas coisas foram ditas. Sabe-se lá quando será o próximo Carnaval, mas minha expectativa é estar bem vivo para seguir falando o que o Brasil precisa escutar agora‘.
Em depoimento a Cleo Guimarães