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Maria Ribeiro: “Quero morrer como Camila Amado”

"Camila me ensinou que coragem vem de cuor agire, e que educação quer dizer 'tirar de dentro' o que já temos e não sabemos que temos", escreve a atriz

Por Maria Ribeiro
Atualizado em 18 jun 2021, 18h01 - Publicado em 18 jun 2021, 06h00
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  • Tenho uns gostos esquisitos. Não cancelei o Woody Allen, tomo Coca-Cola sem ser zero, amo a rainha da Inglaterra — bem mais do que os príncipes William e Harry — e ando completamente apaixonada pelo Renan Calheiros. Além disso, leio poesia como quem faz passeata, uso roupa de festa pra ver série em casa e, desde a semana passada, decidi que uma das grandes metas da minha vida, a partir de agora, vai ser aprender a morrer.

    Sabe aquele filme Quero Ser John Mal­ko­vich? Quero fazer outro. Parecido, mas, diferente. Quero Morrer como Camila Amado.

    Estamos em junho de dois mil e vinte e um, tem quinhentos mil brasileiros faltando, ainda não me vacinei contra a Covid-19, choro quase todos os dias, mas há alegrias que governo nenhum jamais me privará de sentir.

    No meu coração, ninguém manda. No meu cérebro, tampouco. Hoje acordei com vontade de amanhecer, porque às vezes a morte é pra dar festa — os mexicanos sabem bem disso.

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    Sentido é mesmo um troço surpreendente e aleatório. Quando brota, vem certeiro como flecha de Oxóssi. É receber e agradecer, ainda que não se saiba o remetente.

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    Os dias chegam, uns depois dos outros, a gente vai caminhando e cantando — o.k., ultimamente, mais sofrendo do que qualquer outra coisa — mas, de repente, bingo!, vem uma luz do tipo farol no deserto e muda a direção, como diz o Lulu Santos.

    Um dia, ali pelos vinte e poucos, resolvi que queria ter filhos. Em outro, uns dez anos depois, escolhi que seria feliz. Lembro também dos dias em que decidi ir embora, e dos instantes em que tive coragem de bancar ideias e pensamentos, apesar de todos os riscos.

    Liberdade exige responsabilidade, Maria. Isso é Sartre, mas pra mim chegou via Camila Amado. “O importante na vida é decidir”, ela dizia. Ter objetivos e agir de acordo com eles.

    Não que seja um objetivo fácil. E não só porque ela morreu dormindo e tinha oitenta e dois anos (preciso, portanto, de mais trinte e sete). Mas, sobretudo, porque Camila viveu sua morte como quem esperava um filho. Com naturalidade, beleza, alegria, e, claro, algum medo. Com a gravidade e a leveza exatas. Nem mais, nem menos. Camila ficou grávida da sua partida, e, generosa que era, viveu — e compartilhou — cada etapa do seu fim.

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    “Camila viveu sua morte como quem esperava um filho. Com naturalidade, alegria, beleza, e, claro, algum medo. Com a gravidade e a leveza exatas. Nem mais, nem menos”

    Uma das maiores alegrias do meu ofício de atriz é exatamente conviver com os artistas. Não consigo imaginar gente melhor. Com mais alma por metro quadrado. Claro, podemos ser dificílimos. Sensíveis, temperamentais, vulneráveis, autocentrados, vaidosos.

    Mas, também, pudera. Vivemos da subjetividade, das paixões, do casamento indissolúvel com toda e qualquer contradição que apareça no peito. “São crianças fúteis”, Domingos Oliveira já dizia. E, ao mesmo tempo, exemplares altamente rebeldes e profundos dessa espécie que um dia chamamos humana.

    Das alegrias de fazer parte dessa comunidade, ter acesso aos áudios repletos de dramaturgia feitos por quem já naturalmente domina o território da palavra talvez seja a grande cereja do bolo.

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    Essa semana, uma mensagem da Camila circulou entre seus amigos, e foi dos sons mais bonitos que jamais escutei. “Eu tô muito feliz, o que é que eu vou fazer? Tô feliz… Eu já me perguntei: será que eu tô fingindo que tô feliz? Mas, não. Tô com um pouco de medo, claro. Mas tô feliz.”

    Vinte e cinco anos atrás, quando conheci a Camila, um sino de ouro tocou aqui dentro. Um encontro, um encontro, exclamaram em meu coração as badaladas, como quem diz: fique aqui. Demore. Aproveite.

    Aproveitem. Demorem. Ouçam os sinos. Tem morrido muita gente, cariocas. Todos os dias. Mas também tem muita gente ainda aqui. Vinte e quatro horas de oportunidades, irmãos pandêmicos, isso muito antes das farmácias da madrugada e da Globonews. Um mais um dá Deus, já dizia alguém, e olha que Camila gostava mesmo era de Rilke.

    Camila Amado “se encontrou” com muita gente. Era atriz, mas, sobretudo, professora. Contava que aos catorze, seu pai, Gilson Amado, a fez começar a trabalhar, o que ela cumpriu de bom grado, herdando da mãe alguns alunos de latim.

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    Me ensinou que coragem vem de cuor agire, e que educação quer dizer “tirar de dentro” o que já temos e não sabemos que temos — e não “colocar”, olha que ideia bonita.

    Eu sei, está meio autoajuda esta coluna aqui. Mas é que Camila Amado me ajudou muito. E, agora, com ela dentro de mim, me deu vontade de dizer essas coisas.

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