O telefone tocou e eu estranhei, afinal esse não é mais o lugar de fala de um celular. Não demorei mais que dois segundos pra entrar no estado que dedico minha vida a abandonar. No visor, leio o nome da minha sobrinha: Ana. Ana, o nome mais lindo do mundo, ainda mais assim, sem nada, puro, sem outro pra lhe fazer companhia ou roubar-lhe a simplicidade. “Não vou atender”, pensei e decidi ao mesmo tempo, me esforçando pra sair do tal estado — de tensão e/ou atenção absoluta — que há anos me ocupa sem pedir licença. “Não vou atender”, avisei minha analista, como que esperando que ela aprovasse a minha atitude. Eu estava pronta pra reiniciar o delivery “mais coração que cérebro” — ou pelo menos tentar — no sofá que se pretende divã. “Se for importante, ela escreve”, repeti, guardando o aparelho na bolsa, num movimento anti (ou pró) ansiedade que talvez me permita existir e estar aqui, agora, redigindo esta crônica.
Ana não escreveu. Não escreveu e ligou de novo, minutos depois. Atendi. A frase, que suspendeu o ar e congelou o tempo — desde então sob outra condição espacial — não era exatamente improvável, embora na hora tenha sido um raio que dividiu minha vida ao meio: “Tia, o Domingos morreu”. Domingos morreu. Domingos, o Oliveira. Domingos, o meu amor. Domingos, o meu amigo. Domingos, meu mestre Yoda, meu pai, meu par, meu espelho, minha faixa preta, meu cinema em dia de semana, minha bateria de carga infinita, minha ideia de diálogo perfeito, meu remédio contra a solidão, meu Google para tudo o que importa, minha peça de encaixe nesse quebra-cabeça insano de mais de 7 bilhões de peças humanas. Domingos morreu. Um ciclo se fechou com letras garrafais.
No Uber, enquanto ligava pros meus filhos e pra duas ou três amigas, tudo o que era concreto me dava a mão: hoje é dia 23 de março. Faz sol. Domingos morreu em casa, do jeito que ele queria. Morreu rápido, como merecia. Não sofreu. Hoje é sábado. Minha saia é azul, a blusa é branca. O enterro deve ser no domingo. É bonito morrer em março. Meu pai morreu — e também nasceu — em março. Vai fazer sete anos. Chorei um pouco, absorvi a mudança de filtro que se dava na paisagem — externa e interna —, fui até o apartamento dele. Abracei e beijei a Priscila, sua companheira da vida toda, e abri, pela primeira vez, atrás de uma água ou de coragem pra me despedir, aquela geladeira do mundo que agora não tinha o Domingos.
Domingos estava deitado no sofá onde me esparramei pra ouvi-lo durante os últimos vinte e poucos anos. No escritório em que planejamos e realizamos inúmeros filmes e peças, o meu amigo parecia cumprir uma cena que escreveria pra si mesmo: um homem justo e bom estava sendo velado por pessoas cujas vidas marcou profundamente. Então sentei-me no chão e, cumprindo uma marca que parecia ter sido escrita pra mim, beijei o rosto dele, alisei os cabelos que ainda cheiravam a xampu de criança e agradeci mil vezes por tantos encontros que ainda hoje não terminaram pra mim.
Mas por que isso agora, se já vai fazer um ano? Por isso mesmo. Em 23 de março de 2020 vai fazer um ano que Domingos Oliveira não está mais aqui pra me dizer coisas aparentemente simples, como “o maior sinal de inteligência de um homem, minha Maria, é a capacidade de amar”, ou “só um idiota não sabe que o fim da festa é que é a festa…”.
Ah, Domingos, não serão Bolsonaro, coronavírus nem Regina Duarte que vão me roubar o prazer de ocupar este espaço comemorando o aniversário de um ano da sua morte. Sim, comemorando! Sua morte não foi e nem é uma coisa triste, é só mais um dia — ou uma desculpa — pra celebrar a sua vida e o que você fez. Vou beber e cantar exatamente como fizemos no inesquecível sarau de sétimo dia no Teatro Glaucio Gill e também como fiz no seu último aniversário, quando enchi minha casa de fotos suas e festejei uma das existências mais lindas. Seus cabelos ainda estão entre os meus dedos, Domingos, e aquele Sinatra… Ah, aquele Sinatra nunca vai deixar de tocar na nossa caixa de som.