Maria Ribeiro: “A gente também demora pra se recuperar das coisas”
Atriz tem com a mãe, de 80 anos, um diálogo para o qual não só não estudou as falas, como não tem a menor ideia de como improvisar
Você me disse que não pintaria mais o cabelo e eu achei bom. Quer dizer, em tese eu achei bom, mas a verdade é que eu não sei, porque as coisas nunca são as coisas, as coisas são o que elas significam pras pessoas e eu confesso que essa foi uma fala que eu nunca vislumbrei na sua boca. A vida toda você ligou muito pra cabelo e reclamava que eu não penteava nunca o meu, ou que eu cortava muito curto, que devia aproveitar a juventude pra ter cabelão — essas ideias que hoje já não fazem sentido, mas que na sua época, na nossa época, faziam.
Na única vez em que eu cortei o cabelo no estilo “Joãozinho”, isso no início dos anos 2000, e eu tinha uns 25 anos e você, uns 60, você me disse — nunca vou esquecer — que eu estava simplesmente adiantando o tempo. O mesmo aconteceu quando eu, grávida de dois meses do meu primeiro filho, dei pra usar macacão, e você achou que era cedo pra eu me vestir de “mãe”. É tudo como a gente vê o outro, não é? A partir de si. É engraçado isso. Metade triste, metade multiverso.
Te vejo com seus 80 anos, mas também te vejo indo pra faculdade, você, com 40 e poucos anos, universitária. Eu era pequena mas lembro dos cadernos e dos comentários que você reproduzia sobre ser a mais velha da turma. Será que isso era atrasar o tempo? Será que era assim que você pensava? Fazer faculdade depois de quatro filhos, sendo três adolescentes e uma criança? Minha mãe estuda na PUC, eu dizia, isso antes de aprender a ler. Foi, na verdade, quando te conheci. Talvez, de alguma forma, tenha estudado lá pra estar perto de você. Nunca tinha pensado nisso, mas agora, não sei por que, me veio essa ideia.
Você tinha uma máquina de escrever e acho que foi por causa dela que me mudei pra cá, pra esse teclado que agora encaro. Pensar que letras podiam dar em palavras e que isso poderia virar uma folha de papel com tinta, assim como a folha de um adulto, uma receita médica, um documento do trabalho do meu pai, ou uma declaração de amor, nossa, isso, sim, era viver.
“Não dá pra adiantar o tempo, não dá pra atrasar o tempo, mas dá pra fazer alguns planos. Pra mais tarde, pra amanhã, pro mês que vem”
Eu te achava o máximo, e gostava de te ver de jeans. Era raro, porque você tava sempre muito arrumada, e tinha roupas incríveis e maquiagens e sapatos altíssimos que eu planejava ardentemente um dia usar, mas até agora nada. Você vivia organizando festas e jantares e eu até gostava quando eles aconteciam em casa, mas de um modo geral eu te preferia estudante. No modo livros e cadernos, os horários combinavam mais com os meus, e eu ia dormir sabendo que você estava ali, pro caso de eu ter medo de alguma coisa.
E eu tinha. Tinha medo de monstro, tinha medo de assalto, tinha medo do infinito, tinha medo de que você e meu pai se separassem, mas, sobretudo, eu tinha muito medo de que você morresse. Que bom que você não morreu, mãe.
E agora estamos aqui, você e eu, neste junho de 2022, dividindo um diálogo para o qual eu não só não estudei as falas, como não tenho a menor ideia de como improvisar. Você não quer mais pintar o cabelo, e eu acharia isso o máximo caso você estivesse querendo outras coisas. Eu queria te levar pra conhecer o Rio Negro e também pra provar a torta de chocolate belga do café do Instituto Moreira Salles. Aliás, parece que a exposição da Clarice Lispector está impecável, vamos juntas?
Você coloca uma calça jeans, lava os seus cabelos agora lindamente brancos e a gente passeia por aquele jardim que você já foi tantas vezes e que ainda se recupera das chuvas de 2020.
Às vezes, a gente também demora pra se recuperar das coisas. Aposto que o Burle Marx sabia disso.
Não dá pra adiantar o tempo, não dá pra atrasar o tempo, mas dá pra fazer alguns planos. Pra mais tarde, pra amanhã, pro mês que vem.
Quer saber?
Vou descobrir até quando vai a Clarice.
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