Quando eu tinha 11 anos, falsifiquei, pela primeira vez, a assinatura da minha mãe. Meu boletim escolar tinha vindo com duas notas vermelhas, e eu, por conta própria, cheguei à conclusão de que física e matemática não valiam o sermão materno. Ser punida por não compreender frações não me parecia justo, e talvez eu mesma não quisesse admitir uma incompetência lógica que, infelizmente, me acompanha até hoje.
Mais tarde, aos 16, fui um pouco mais longe. Para ter 18 anos em uma sexta-feira de junho de 1991, na quarta anterior, ou seja, dois dias antes, antecipei meu nascimento em vinte e quatro meses. Na época — início dos anos 90 —, tudo o que eu queria era ser grande o suficiente pra entrar na boate Papillon. E considerava (ainda considero) que dançar e encontrar o menino de quem eu gostava eram motivos mais do que suficientes para bancar uma identidade falsa. O menino não me deu a mínima, mas a transgressão, embora não seja motivo de orgulho, segue firme e acesa na memória.
Também já menti sobre peso, altura e na hora de responder ao clássico “tudo bem?” (afinal, nosso “tudo bem?” nada mais é do que um “oi”). Também já disse que estava chegando quando ainda estava em casa, que estava em casa quando estava viajando, e que estava feliz quando estava triste. Isso, sem falar no Instagram, onde pareço ótima e com lápis de olho desde 2012.
Mas falsificar carteiras de vacinação? De uma vacina que impediu milhares de mortes? Para viajar para os Estados Unidos? Olha… Nosso ex-presidente é, de fato, um personagem sui generis. Sui generis, no caso, sendo usado como um termo extremamente gentil — o que comprova a manutenção da falsidade da garota que assinava o boletim pela mãe.
“Já menti sobre peso e altura. Também já disse que estava chegando quando ainda estava em casa. Sem falar no Instagram, onde pareço ótima e com lápis no olho desde 2012”
Pra quem não tem acompanhado o caso, Jair Bolsonaro teve o telefone celular apreendido no início do mês, e seu ex-ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid, foi preso — ao lado de outros cinco homens ligados a Bolsonaro. O crime? Falsificação de dados de vacinação.
Escrevo esse texto dias depois da morte da Rita Lee. A cantora e compositora, um ícone do rock brasileiro, não resistiu a um câncer de pulmão — que ela batizara, não à toa, de Jair. O ex-presidente, de fato, segue nos assombrando, e não duvido de que sua “nuvem” ainda vá derrubar muita gente, mas, pior do que ele, agora parte do passado, é a herança do pensamento bolsonarista.
Família, por exemplo. O discurso que exalta o casamento e os bons costumes, muito usado desde sempre — e também por Bolsonaro — raramente se faz necessário por quem realmente o coloca em prática. Ou alguém aí se lembra de alguma fala da Rita Lee se dizendo “do lado certo”, ou mais “família”, por estar casada há anos com o mesmo homem? Rita e Roberto de Carvalho foram parceiros por quarenta e sete anos, e nunca fizeram questão de lucrar com a monogamia.
Era Millôr Fernandes, o gênio da síntese (o gênio de tudo, aliás), quem dizia: “Desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal”. Rita e Roberto falavam de sexo, de prazer, de alegria, de equidade de gênero, tudo isso com a naturalidade de quem “é” a bandeira, e, por isso, prescinde de manifestos. “Me deixa de quatro no ato” é um verso de amor. Pelo menos pra mim.
Falsificações, portanto, só valem se for pra encontrar o menino, ou a menina, de quem a gente gosta. E pra esconder nota de física e de matemática. Mentir sobre vacina é crime. O resto é propaganda.