Eu juro que eu queria gostar do Natal. Acordar, como se tivesse acabado de nascer de novo, e dizer a mim mesma: “Ah, dezembro… Que alegria habitar em você…”. Não seria uma beleza? Ter trinta e um dias de glória, e não de horror? Receber o verão abraçada à turma do ho, ho, ho e escolher um look superalto-astral pra festinha do Cristo e outro bem “família” pra virada do ano? Ou seria o contrário?
Não importa. A ordem dos fatores — ou dos figurinos — poderia, e pode, fazer diferença em muitas situações, mas, aqui, a flecha tem nome e sobrenome. Eu sei, eu sei. Bullying atualmente não é — e que bom! — uma prática exatamente aceita, mas não há duvidas, conterrâneos: o mês em questão pertence de fato à parte do mundo que considera que festas de fim de ano são realmente festas de fim de ano.
Pois é. Quer dizer, não é. Mas não é, tipo assim, meeees-mo. Sou da outra metade, se é que a divisão é justa assim. No departamento de matemática. Ou da subtração. Porque o meu estado civil atual é mais ou menos o seguinte: sinapses extremamente prejudicadas pelas luzes que piscam desde a farmácia da esquina até o shopping do bairro, ouvidos altamente sensíveis a músicas temáticas que envolvam renas e afins, e dermatite imediata diante de qualquer alimento à base de frutas cristalizadas.
É um pensamento egoísta, eu sei. O turismo gosta do Natal, o comércio precisa do Natal, os panetones também são filhos de Deus. Mas como “pausar” tudo o que vivemos nos últimos dois anos e entrar nesse filme feliz? Alguém me ensina? Ou me empresta os óculos?
Ah, sim, manual de humanidades, capítulo 1, versículo primeiro (já tive essa aula, acho que ali pelos 30, na primeira grande dor, mas volta e meia preciso voltar a ela): “saindo de si”. É essa a resposta. Sair de si. Pra quase tudo, aliás. Porque tem sempre alguém lutando bravamente contra algum dragão, e, muitas vezes, o dragão do outro (ai, que palavra linda!) é bem mais violento do que o seu.
“Sempre tem alguém lutando bravamente contra algum dragão, e, muitas vezes, o dragão do outro é bem mais violento do que o seu”
Sou boa de amigas e “ruim de não”, como dizia meu pai. E ego é mais ou menos como franja: há que se aparar com alguma frequência (desculpem, sou um ser da franja, prometo analogias mais nobres na próxima vez). Ou não.
É que nem sempre é fácil mudar o eixo da câmera. Deixar de lado o tanto de cena de criança na rua pedindo dinheiro (ou carne!) e/ou o tanto de miudezas que nos roubam a energia para simplesmente seguir em frente. Ou então seguir, só seguir, que se dane pra onde e para qual ceia.
A propósito, só há uma ceia, e ela acontece no intervalo do primeiro e do último grito. Dá tempo de fazer muita coisa, Vejinhers. E de estender a mão a muita gente. E a si também. Inclusive com aquilo que nos envergonha, e que relutamos em ver.
Essa semana estive com meu filho mais novo, derrubado — como metade da cidade — pelo surto de influenza A. Em um hospital da Zona Sul carioca, coberta de privilégios e ainda assim em pânico, só pensava no país que foi embora com a Covid e na quantidade de gente que é massacrada pela pobreza e pela desigualdade.
A febre do meu caçula, de 40 graus, a maior parte do tempo, baixava pra 38,5 e olhe lá. Eu, mãe no modo bateria cheia, usei, em dois dias, todo o meu arsenal de atriz pra dizer, olhos nos olhos de um pré-adolescente, que por instantes parecia uma criança com medo do escuro, que aquilo não era nada, que ia ficar tudo bem, que febre alta às vezes é normal.
E é. Febre alta, melancolia de fim de ano, saudades dos nossos mortos — e eventualmente também dos nossos vivos.
Mas há uma festa que ninguém cancela, e que independe de fogos, rabanada (amo!) e do calendário gregoriano: a festa da gentileza. A frase é cafona, mas antes assim.
Seja gentil, seja gentil, seja gentil, alguém já disse, e eu vou deixar esse Google pro leitor.
Boas festas, cariocas. Em não podendo vencê-los, juntemo-nos a eles — especialmente a Jesus Cristo. Esse era revolucionário, e aposto que bom de bar e de travessia.
Feliz 2022!
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