Maria Ribeiro: “E pra quem chega de fora: vem e fica, mas fica mesmo”
Atriz e colunista faz reflexão sobre o que é ser carioca e homenageia as pessoas da cidade que a trouxeram até aqui
Nunca pensei nisso, de ser carioca. Como também não penso sobre minha altura, os alpes da embalagem do Toblerone, ou a incapacidade de segurar o choro diante de fatos cada vez mais simples, como, por exemplo, acordar, ouvir Gal, ver meus filhos crescerem. Algumas coisas, como naturalidade, filiação ou personalidade, são tão definitivas como casas tombadas. Um verdadeiro descanso, pra quem, como eu, é bom de Hamlet, e questiona existência, filmes e mensagens de WhatsApp. Meu reino por um controle remoto de cérebro. De preferência com um céu estrelado como descanso de tela, ou um recreio obrigatório de pelo menos uma hora de “nadismo” pra descansar do “corre” diário da vida inventada por Steve Jobs. Até tu, wi-fi?
Será que antes era diferente? Que o silêncio — que parece ter ido embora à francesa — virou uma espécie de Floresta Amazônica? Um oxigênio que precisa ser salvo? Ou será que é a gente — no caso, eu — que simplesmente aceita a vida que todo mundo vive? E vai levando, como uma vez escreveu Rubem Braga, em meio ao conforto da manada, tranquilos, invisíveis e subservientes como bois?
Vai ver é isso… Passividade, covardia, ou um certo “autos”. Por outro lado, pode ser também que, a essa altura, eu já tenha decidido o suficiente nesse CPF. Quis fazer filmes, escrever, casar, ter filho, separar, casar de novo, ter filho de novo, separar de novo, ter amigos de verdade, cães, gatos, passaportes carimbados. Deixei pra trás duas casas, três ou quatro certezas, quase todos os meus ídolos, idéias vencidas, falas e roupas que não cabem mais nas fotos, e uma única linha cruzada.
Amei meus pais, odiei meus pais, amei de novo, e já perdi muito tempo estudando cardápios e palavras tortas. De modo que, hoje, com mais da metade da estrada pra trás — se tudo der certo — e um ingresso que espero ser de mais ou menos oitenta verões, o projeto é de zen-budismo absoluto, ou, em bom carioquês, de aceitação radical da realidade. Mar calmo? Tô dentro. Com onda? Idem. O manual é ir, com ou sem medo.
“Uma das melhores coisas de pertencer a uma cidade e gostar do seu elenco é não abrir mão nem dos nossos defeitos”
Da mesma forma, faço o que posso, vou até onde dá, e sei que, assim como eu, não há um único filho de Deus nessa terra vermelha que não esteja em uma batalha violenta para ir em frente. Existirmos, a que será que se destina?
Tenho um palpite. Amar e odiar, amar e perdoar, amar e amar, até, finalmente, amar sem pensar. Em um edição em que falamos de personagens queridos da cidade, e deixando toda a minha raiva exclusivamente pro jogo da discórdia do BBB (socorro, nunca vi nada tão terrível e maravilhoso), escrevo aqui minha pequena lista de conterrâneos do tipo viga. Gente que me trouxe aqui, e sem as quais não teria atravessado tantas avenidas sem passarelas, e na dúvida se ia dar certo ou não.
Vera Lucia, professora de português do São Patricio, meu primeiro colégio, que me disse, aos 8, que eu sabia escrever. Obrigada, Vera. Não te vejo desde os 10 anos de idade, mas nunca vou esquecer de você. Domingos Oliveira, meu maior amigo de todos os tempos, que me mostrou filmes e músicas, que me ensinou um monte de coisas, mas principalmente a gostar de mim, obrigada. Evandro Mesquita, Stella Marinho, Fernanda Young, Leila Diniz, Fernanda Torres, Marielle Franco, a lista é grande e os motivos são variados.
Mas uma das melhores coisas de pertencer a uma cidade e gostar do seu elenco é não abrir mão nem dos nossos defeitos. Somos uma espécie de Bar Lagoa — se é que vocês me entendem. E pra quem chega de fora, uma dica: vem e fica, mas fica mesmo. Aqui tem Mata Atlântica e silêncio, e samba pra rir e ficar triste. Não é assim que tem que ser?
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