Em abril, uma combinação de direção com intensidade do vento fez acordar a Laje da Besta, uma onda rara que atingiu 5 metros em plena Baía de Guanabara, atraindo uma tribo de surfistas caçadores das grandes alturas, os big riders, como Pedro Scooby, Carlos Burle e Michelle des Bouillons, a primeira mulher a deslizar sua prancha naquele ponto.
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Eles vinham monitorando havia semanas indicadores climáticos à espera da “tempestade perfeita”, que faria despertar a massa d’água gigante. A raridade do fenômeno, aliada ao cenário cinematográfico, com o Pão de Açúcar ao fundo, chamou merecida atenção nas redes.
Mas era do outro lado da baía, na Ilha Mãe, em Niterói, que quebravam ondas ainda mais magníficas. E justamente lá, em lugar surpreendente, estava Yana Vaz, fotógrafa aquática especializada em flagrar imagens estupendas do surfe, flutuando na água e empunhando sua câmera acondicionada em uma caixa estanque (aparato que veda hermeticamente o equipamento para não entrar água).
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Com a mira certeira, não deixou escapar nenhuma manobra de Lucas Chumbo e Pedro Calado vencendo seus tubos com mestria. “Naquele dia, o swell encontrou com o maral e resultou em uma precipitação épica, só vista em mares como o do Taiti, o da famosa e temida onda Teahupoo”, afirma, cheia de jargão, a profissional de 43 anos.
Moradora do Recreio, Yana integra um grupo cada vez mais numeroso de destemidas cariocas que desafiam as correntezas e o universo masculino do surfe e de outros esportes aquáticos para buscar ângulos únicos dentro do mar. Neta de Yara Vaz, pioneira na difusão da ginástica, e filha de pai mergulhador, Yana já tinha boa intimidade com a água quando se tornou atleta de bodyboard — foi sagrada campeã mundial em 2017.
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Mas sentia falta de registros de suas piruetas sobre a prancha. Foi quando começou a carregar na mochila uma câmera para lugares como Puerto Escondido, no México, onde acabou por fazer fotos da maior onda já surfada de bodyboard, pelo niteroiense Kalani Lattanzi.
Tais cliques a catapultaram para o mercado, no qual logo despontaria. Hoje uma profissional premiada, com um portfólio que inclui “picos” como Pipeline e Waimea, no Havaí, e imagens de tirar o fôlego para programas do canal Off, ela acompanha alguns dos mais notórios big riders do Brasil.
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Seu trabalho demanda alto domínio das técnicas de fotografia, mas não só. “Filmar na água exige estabilização, você não pode tremer nem praticamente respirar”, explica Yana, que tem mestres profissionais do calibre de Henrique Pinguim e Paulo Barcellos.
Para enfrentar a força das marés com câmera em punho, é preciso imenso preparo físico. Uma única saída de duas horas pode queimar cerca de 800 calorias, o equivalente a um treino de crossfit.
“Como ficam horas e horas no mar atrás de uma imagem executando movimentos variados, é vital trabalharem condicionamento cardiopulmonar, cardiovascular e neuropulmonar para evitar lesões”, lista Andrea Orlandi, preparadora física que já treinou muitas dessas profissionais.
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Para aguentar o batente, elas obedecem a uma rotina intensa de atividades físicas, que inclui natação, corrida, muay thai e treinos funcionais e de apneia — este auxilia atletas a permanecer o maior tempo possível submersos.
“Estar segura e confortável na água é imprescindível, senão você não consegue fotografar. É preciso ter força e conhecimento técnico, porque não há tempo de pensar muito na hora de clicar”, ressalta Ana Catarina, 38 anos, outra desbravadora dos oceanos.
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Tanto esforço traz grandes compensações. Quem segue a profissão passa a viver definitivamente mais próximo da natureza e tem a chance de visitar os lugares mais fotogênicos do planeta, sem exagero. Após doze anos cumprindo uma rotina burocrática como funcionária pública, Ana Catarina decidiu mudar radicalmente seu estilo de vida.
Começou a se aventurar com a câmera nas férias, fora do mar, mas foi a água que a fisgou. No início de junho, lá estava ela, na Indonésia, eternizando grandes momentos da campeã Maya Gabeira. Rumou depois para as Ilhas Maldivas, para registrar um grupo de mulheres surfistas em ação.
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Neste mês, seguiu para El Salvador, com a missão de fotografar uma campanha do governo para impulsionar o turismo no país através do surfe. Ela, que também promove cursos e workshops, calcula que as mulheres representem atualmente 80% de suas turmas.
“Quero ver cada vez mais meninas neste universo”, reforça a mestre, referência para garotas como Sam Manhães, 20 anos, promessa da mais nova geração. Foi Ana Catarina quem a presenteou com sua primeira caixa estanque, prêmio que recebera em um concurso disputado contra catorze homens.
União e solidariedade são um traço nesse movimento de mulheres que mergulham de cabeça no mundo do surfe. A canadense Bryanna Bradley tem se dedicado a registrar a crescente comunidade delas nas águas geladas de Tofino, distrito da Ilha de Vancouver, na costa do Pacífico, onde mora.
Nestas bandas do Atlântico, Anna Verônica, que deu seus primeiros cliques em um período sabático quando questionava se queria continuar na estabilidade do mundo corporativo — “podia comprar a melhor bicicleta de todas, mas não poderia pedalar” —, lança neste mês o filme By Women, um documentário que mostra a construção, em quatro cidades (Rio, Santos, Guarujá e Cabo Frio), de uma prancha de surfe feita 100% por mulheres, da laminação à quilha — “deve ser a primeira do Brasil”, frisa.
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Até bem pouco tempo atrás, quase não se notavam mulheres fotógrafas na raia aquática, nem tampouco a presença feminina nas ondas. Mas, como se vê, a maré mudou.
“Elas trazem uma delicadeza no olhar e na forma com que encaram o mar, mas também persistência, coragem e equilíbrio psicológico. Esse movimento é muito importante para o crescimento do esporte como um todo”, avalia Sebastian Rojas, que, com 36 anos de carreira, é um dos pais da fotografia aquática no Brasil.
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De fato, essa tomada de posição por trás das lentes ocorre ao mesmo tempo que as mulheres surfistas buscam mais espaço no esporte. Em 2018, Maya Gabeira precisou pressionar a Liga Mundial de Surfe para que seu recorde da maior onda já vencida por uma mulher, em Nazaré, Portugal, fosse reconhecido — até então, só marcas masculinas eram registradas.
E assim se inaugurou uma nova categoria de recorde, batido por ela mesma em setembro do ano passado. “Acho que a gente acaba se espelhando em atitudes de outras mulheres. E a Maya mostrou que tudo é possível”, resume a amiga Ana Catarina, orgulhosa integrante da invasão feminina pelos sete mares.