A pandemia afastou eventuais planos de festa, mas, cá entre nós, o homenageado não ia querer mesmo. “Dá muito trabalho. Todo mundo se diverte e você fica morto de cansado. Quando vê, são 4 da manhã e nunca fui muito da noite”, resume. Menino de 1º de agosto de 1941, Ney Matogrosso, às vésperas de se tornar um octogenário, celebra como sabe melhor: está preparando disco novo. As gravações das doze faixas de Nu com a Minha Música, composição de Caetano Veloso que batiza o trabalho, começaram (e devem terminar) em julho.
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No dia do aniversário, quatro ganharão os canais de streaming. O álbum completo será lançado até o fim do ano. Antes, neste dia 23, chega às livrarias Ney Matogrosso — A Biografia (Companhia das Letras, 512 págs., 89,90 reais). Escrito pelo jornalista Julio Maria, o livro é retrato esmerado de um artista que, na sua odisseia rumo ao olimpo da MPB, viveu aventuras mirabolantes — quase todas aqui no Rio. O mato-grossense-do-sul Ney de Souza Pereira já percorreu mais cantos desta cidade do que muitos cariocas da gema.
Nu com a Minha Música, o disco, reúne composições que não são inéditas, mas jamais haviam sido registradas na voz de Ney. “Eu escolhi todas, eram músicas que eu sempre quis cantar”, conta o dono da festa. A lista vai das clássicas Sua Estupidez (Roberto e Erasmo Carlos) e Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho) a Boca, de Felipe Rocha, que seu irmão, Rafael Rocha, baterista da banda Tono, lançou em disco-solo — e ganhou clipe com participação de Ney Matogrosso.
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A biografia de Julio Maria é a segunda dedicada ao artista (Um Cara Meio Estranho, de Denise Pires Vaz, é de 1992). O livro vai das origens de Ney, nascido em Bela Vista, na fronteira com o Paraguai, à primeira dose da vacina contra Covid, recebida por ele em 1º de março deste ano, no Planetário da Gávea. Leitura saborosa, revela a cada página a importância de cenários e personagens cariocas na vida do biografado.
Ney teve como primeiro endereço no Rio uma casa com quintal gigante no bairro de Marechal Hermes, onde, ao lado da mãe e do irmão mais velho, reencontrou seu pai — o sargento da Força Aérea Antonio Matto Grosso Pereira voltava de missão na Itália, na II Guerra Mundial. Dali, a família mudou-se para Padre Miguel. Dos 6 aos 13 anos, o garoto comeu muita fruta no pé, brincou pelas ruas da Zona Oeste e, durante um período, dedicou-se a passatempo incomum: visitava com frequência o Cemitério do Murundu, em Realengo. “Ia muito, gostava, não sei o porquê. Era longe de casa, ficava andando lá dentro, vendo os mortos que chegavam”, conta.
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Após o retorno à terra natal e a adolescência recheada de confrontos com o pai, o jovem de 17 anos volta ao Rio ao se alistar na Aeronáutica. Dos dois anos de serviço na Base do Galeão, além de aprender a montar e desmontar armas, guarda a lembrança de uma cidade inocente. “De quinta a domingo não dava para andar pelas calçadas de Copacabana, tamanha a quantidade de gente fazendo footing. As mulheres passeavam com joias na rua”, diz.
A coisa, no Rio e no planeta, começa a esquentar a partir da segunda metade dos anos 1960. Naquele tempo, Ney ainda queria ser ator de teatro — em 1971, dividiu o palco do Teatro Casa Grande com Regina Duarte no musical infantil Dom Chicote Mula Manca e Seu Fiel Companheiro Zé Chupança — e desenvolveu o talento para artesanato do qual se orgulha até hoje. “Virei hippie e ainda acredito no ideal. Mas tomava banho todo dia”, conta.
Também no Rio, conheceu a compositora Luli e foi empurrado por ela para a música. Na casa da amiga em Santa Teresa, teve o primeiro encontro com João Ricardo e Gerson Conrad, seus parceiros no histórico conjunto Secos & Molhados. O trio durou pouco, de 1972 a 1974, lançou dois discos e fez sucesso monumental. Depois, o cantor engrenou carreira-solo e o resto é (mais) história.
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O oitentão Ney Matogrosso curtiu horrores a praia no Posto 9. “Já morava no Leblon. Olha como a gente era esquisito: acordava, tomava um copo de leite, engolia uma gema e ia andando até Ipanema. Ficava na areia até as 7 da noite, só na base de abacaxi, melancia, mate.” Nunca foi das madrugadas, como disse, mas a paixão vivida com o cantor e compositor Cazuza o levou a desbravar as noitadas do Baixo Leblon na virada dos 1970 para os 1980, em mesas lendárias como a do restaurante Real Astoria. “Ele era da noite e eu queria estar junto dele, né?”, justifica.
Tem muito mais Rio de Janeiro na vida de Ney Matogrosso. Ele brilhou no Canecão e foi a atração de abertura do primeiro Rock in Rio, em 1985, mas também se apresentou em lugares como a extinta penitenciária Lemos de Brito (com o show Bandido, em 1976) e o Circo Tihany (em 1984, com o espetáculo Destino de Aventureiro). Dormiu na praça (Serzedelo Corrêa, em Copacabana), fez bico de iluminador na Sala Cecília Meireles e, na feira hippie de Ipanema, viu de longe a cantora americana Janis Joplin bebendo Fogo Paulista (um tipo de licor de ervas com mel) no gargalo.
Recolhido desde o início de 2020 — “nunca tinha passado tanto tempo sem cantar”, diz —, o aniversariante de 1º de agosto divide seu tempo entre a ampla cobertura no Leblon e uma propriedade na Serra do Mato Grosso (o nome é coincidência inacreditável), perto de Saquarema, comprada em 1983. No apartamento com vista para o Cristo, a Lagoa e a praia, um jabuti passeia pela sala e a macaco-prego Garota, seu xodó, recolhe-se a uma jaula espaçosa quando chegam visitas.
No sítio, onde vive sua mãe, dona Beíta, 98 anos, a fauna é mais ampla: com o aval do Ibama, o cantor transformou o recanto em RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural). “Lá soltamos preguiças, jiboias, gaviões, cachorro do mato, tamanduá, entre muitos outros bichos. O Ney é de uma generosidade ímpar”, conta Roched Seba, criador do Instituto Vida Livre, dedicado ao resgate e à reabilitação de animais silvestres.
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No conforto do dúplex ou no verde da Serra do Mato Grosso, Ney olha para trás e diz não sentir saudades. “Sinto falta, lembro das pessoas, mas não tenho essa dor que a saudade evoca”, explica, desapegado. “Ele queria fazer teatro, música não estava nos planos. Quando começa, é um cantor sem referencial, virgem no sentido artístico. Talvez por isso tenha trilhado um caminho tão diferente”, opina o jornalista Julio Maria, seu biógrafo. E talvez por isso tenha chegado tão longe.