Da moda à gastronomia, ícones de outros tempos retornam à vida do carioca
Onda nostálgica impulsionada pela busca da sensação de aconchego se intensificou na pandemia, trazendo de volta do ovo de codorna com molho rosé a Pantanal
Ovo de codorna com molho rosé: sim, de volta ao Chanchada Bar
Exibida há mais de três décadas pela extinta TV Manchete, Pantanal, novela de Benedito Ruy Barbosa, se tornou, no atual remake da trama, um fenômeno que perpassa gerações e classes sociais. A releitura global, assinada pelo neto do autor, Bruno Luperi, vem batendo recorde atrás de recorde de audiência e de engajamento nas redes sociais. Tamanho sucesso fez a emissora colocar no radar a reedição de outro clássico, Xica da Silva, de 1996. O frenesi em torno da lenda de Maria Marruá, a mulher que vira onça, finca raízes em uma tendência mundial que ecoa no Brasil: ícones de outros tempos estão retornando sob o embalo de uma onda nostálgica que aflorou com força na pandemia e persiste depois dela. Do entretenimento ao consumo, passando por gastronomia, moda, música e decoração, percebe-se uma busca pelo conforto proporcionado por aquilo que nos é familiar. “Enquanto a expectativa de mudança em um futuro causa ansiedade, o passado é um terreno conhecido. Por isso, esse olhar para trás nos acompanha, como um eterno vale a pena ver de novo da vida”, explica Carol Fernandes, coordenadora do laboratório de tendências da Casa Firjan.
Durante o isolamento pandêmico, tal “viagem no tempo” acentuou-se como poucas vezes se viu. E a ciência foi investigar as razões, trazidas à luz em um estudo conduzido por pesquisadores das Universidades de Southampton, na Inglaterra, e de Zhejiang, na China. Ele mostra que a lembrança de vivências que deixaram saudade eleva a sensação de felicidade e suaviza o peso da solidão. Além disso, diferentes gerações, forçadas a conviver sob o mesmo teto, começaram a trocar experiências, o que intensificou o interesse pelo passado. “Pude assistir ao tricampeonato do Ayrton Senna com os meus filhos e essas retrospectivas me inspiraram a resgatar outras memórias”, lembra o produtor Peck Mecenas, pai de dois meninos, de 7 e 14 anos. E assim ele pôs de pé o Rock Brasil 40 Anos, primeiro grande evento-teste no Rio pós-Covid-19, realizado em novembro, com shows de ícones da música nacional dos anos 1980. Depois de rodar o país e retornar para uma segunda etapa na cidade, o projeto provou o apelo do saudosismo ao reunir mais de 365 000 pessoas e ganhará sequência em 2023, com outro festival, batizado de Gangue 90, que vai contemplar a trilha sonora da década seguinte.
Foi uma banda das antigas, aliás, que despertou a veia nostálgica do restaurateur carioca Eduardo Araújo. Quando uma amiga na casa dos 20 e poucos anos começou a ouvir o grupo Depeche Mode, formado em 1980 na Inglaterra, ele resolveu pesquisar e descobriu um movimento nascido na Coreia do Sul chamado “newtro” (mistura da palavra “novo”, em inglês, com retrô), baseado na repaginação das ondas do passado. “Tinha tudo a ver com a proposta de resgate que eu busco para os meus bares, sempre com um olhar renovado”, conta ele, à frente de quatro espaços na cidade invariavelmente lotados. No Chanchada, em Botafogo, ele introduziu há pouco o ovo de codorna com molho rosé — agora marinado no shoyu. Mesmo trivial, virou um dos petiscos mais vendidos da casa. O sucesso de clássicos que atravessam as décadas se repete em seus outros negócios. Próximo dali, no Quartinho Bar dá para pedir um dry martini servido com azeitona na taça cupê, à la James Bond. No Café 18 do Forte, em Copacabana, o bloody mary vem com um enorme camarão, como nos coquetéis de outrora, enquanto o gastrobar Pope, em Ipanema, dispõe de carta só de negroni — drinque muito apreciado lá atrás que se tornou o mais pedido no mundo em 2021, segundo a publicação britânica Drinks International.
Uma busca nos sites de comércio eletrônico fornece mais evidências de que produtos que até há pouco pareciam restritos ao universo dos colecionadores atraem renovada atenção. Após o início da pandemia, o Buscapé registrou um aumento de 139% no interesse por ofertas de vitrola e toca-discos. “Eu gosto do ritual que envolve um vinil, ouvir música vira uma experiência e a qualidade sonora nos transporta para outros tempos”, diz Daniel Martins, ex-baterista da banda Medulla e novo assinante do Noize Record Club, um clube de assinatura de vinis que viu aumentar em 200% o número de inscritos desde o início da pandemia. Letreiros de neon em alta na decoração, câmeras analógicas a tiracolo e noitadas com repertórios temáticos de distintas gerações são mais alguns exemplos da mania nostálgica que se espraia pela cidade. “Tem uma trinca que sempre deixa a pista cheia: Donna Summer, Thelma Houston e Sister Sledge”, lista Rosana Rodini, uma das sócias da festa Carnageralda, que já teve duas edições disco, com frequentadores que chegam montados a caráter com looks dos anos 1980. “Existe uma memória afetiva em torno desse tempo que faz o público se conectar”, acredita.
Atire o primeiro chinelo Kenner o trintão que não teve suas memórias atiçadas pelo vídeo compartilhado nas redes das dançarinas Aline Maia e Juliete rebolando em Madureira ao som de Tati Quebra Barraco e DJ Marlboro. Hoje com mais de 3 milhões de visualizações, a gravação foi feita com o funk Montagem Guerreira, que alcançou a fama no início dos anos 2000. A dupla ainda vestia o shortinho de lycra inspirado na marca Bad Boy, clássico incontestável de quem viveu naquela época, usado também pela cantora Anitta em sua última festa de aniversário, em Los Angeles.
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“Nosso cérebro tende a registrar mais as coisas boas, por isso algumas memórias são até um pouco distorcidas da realidade. A nostalgia vem como uma descarga de dopamina que nos dá a oportunidade de reviver as coisas boas do passado”, esclarece a psiquiatra Analice Gigliotti. “É o que acontece quando colegas de turma se reúnem ou sentimos um cheiro de que gostávamos muito”, acrescenta. Isso ajuda a explicar o burburinho que o retorno de outros xodós do carioca, como o Tivoli Park e a loja de departamento Mesbla, provocou nas redes sociais. Recordar também é viver.