Ainda na adolescência, Henrique Vieira ficou praticamente cego. Uma grave inflamação no nervo óptico fez com que passasse dois anos, enquanto se preparava para o vestibular, sem poder ler, escrever nem sequer andar sozinho. Na época, era aluno bolsista, pobre, negro e evangélico de um colégio particular. Já nesses tempos, o menino se dava com grupos variados e furava bolhas ideológicas, graças à sua capacidade de diálogo. Era um dos mais populares da escola. “Sempre fui muito tranquilo, gosto de trocar ideia. Eu falava do Flamengo e logo ficava amigo, né?”, brinca.
A notícia da doença impactou os colegas de tal forma que eles se revezavam para ajudá-lo a estudar, copiando em letras garrafais as matérias em seu caderno. Henrique ficou entre os primeiros colocados em todos os vestibulares que prestou e formou-se em história, sociologia e teologia, quase simultaneamente. Depois de longo tratamento, a cegueira se foi, embora não 100% — ele tem apenas visão periférica —, o que não o impediu de despontar como uma liderança evangélica reconhecida por enxergar além dos conservadorismos e dogmas, cativando gente de diferentes credos com um discurso franco, direto e capaz de tecer autocríticas.
Nascido e criado no bairro do Fonseca, em Niterói, e hoje morador de Laranjeiras, o pastor Henrique, de 36 anos, filho de um alfaiate e de uma professora, é também ator, professor, escritor, militante, ativista, poeta, palestrante e acumula mais de meio milhão de seguidores só no Instagram — os cantores Caetano Veloso e Gilberto Gil, de quem frequenta a casa, as atrizes Paolla Oliveira e Bruna Marquezine e a jornalista Maju Coutinho estão no rol.
Após fundar a Igreja Batista do Caminho, celebrar casamentos e cultos é uma das ocupações que lhe tomam a agenda (a de casórios vive cheia, com cerimônias semanais marcadas em várias cidades do país e até no exterior). As incursões artísticas contribuem para alavancar sua popularidade, como a atuação no filme Marighella, de Wagner Moura — cuja união também celebrou —, a participação no disco de Emicida e no palco do Lollapalooza ao lado do cantor e a presença em inúmeros programas de TV.
Mesmo que soem inconciliáveis, todos os ofícios de Henrique são delineados por sua militância em prol de causas como a luta antirracista e a união homoafetiva. “Henrique é uma das pessoas que melhor faz a junção entre poesia, força e lucidez”, elogia Lázaro Ramos, coprodutor da peça O Amor Como Revolução, escrita pelo pastor com base em seu livro homônimo. “É um talento muito específico. Eu me emociono muito sempre que o ouço”, completa o ator.
Em abril, Henrique, que se põe abertamente contra o atual governo, lançou a campanha inter-religiosa “Derrotar Bolsonaro é um Ato de Amor”, reunindo cristãos de igrejas diversas. “O projeto bolsonarista é diabólico”, vaticina. Ser um pastor diferente, entusiasta do Estado laico em um país onde a religião evangélica — declarada por 31% da população, segundo o Datafolha — mobiliza causas como a defesa da moral, da família e um forte sentimento antiesquerda, não é nada trivial, e ele sente isso na pele.
Ex-vereador pelo PSOL em Niterói, Henrique se dedica a combater o que vê como “abusos das igrejas pentecostais conservadoras”, cuja representatividade política avança cerca de 20% a cada pleito municipal e 10% em eleições federais, segundo o Instituto de Estudos da Religião (Iser). “Sites gospel me achincalham o tempo inteiro, sou diariamente atacado por haters”, relata.
Mas, com sua expertise em empregar a palavra para demolir discursos calçados em ódio e desinformação, acredita na construção de pontes com essa parcela de brasileiros, ainda que a tarefa não passe pelos palanques (recentemente, ele vem resistindo a pedidos para se candidatar a deputado federal). Casado com a atriz Caroline Inácio, pai de Maria, de 4 anos, e com planos de inaugurar uma sede para a sua igreja — hoje uma entidade com vida apenas nas redes —, ele acha que uma ida a Brasília acabaria por diminuir seu alcance. “Minha militância é ampla em campos distintos da sociedade”, justifica.
Na esfera religiosa, ele prega a existência de um Jesus negro, oriundo da periferia de Nazaré, em contraste com a figura muito mais disseminada. “O chão da Bíblia tem a ver com o quilombo, mas a sua leitura é feita pela casa grande. Ela vem dos pobres e vulneráveis, mas é interpretada pelos ricos e poderosos”, defende Henrique, cuja principal inspiração é o pastor e ativista negro americano Martin Luther King Jr. (1929-1968). A propósito do tema, prepara os livros Jesus da Gente e Jesus Negro.
Foi na adolescência que começou a relacionar o cristianismo com a ideia de justiça social. Aluno do ex-deputado Marcelo Freixo (PSB), atual candidato ao governo do Rio, conheceu o manicômio judiciário Frei Caneca, como parte de um trabalho de escola. “Aquilo foi muito impactante para o Henrique, uma virada de chave, dessas que só acontecem às vezes na vida da gente”, lembra Freixo. “Mexeu na sensibilidade dele, em um lugar de percepção das injustiças.”
Na mesma época, o jovem seminarista evangélico descobriu a existência de uma ala progressista da Igreja Católica, nas figuras de Dom Hélder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns. Hoje, prepara um livro com outro expoente católico com quem compartilha a luta contra fundamentalistas religiosos: o padre Julio Lancellotti, de São Paulo. A obra, com a participação da monja Coen, será, segundo ele, um tratado sobre o amor.
“Seguimos o mesmo Jesus, o do Evangelho, e acreditamos que o amor é dádiva, doação, entrega e compromisso”, diz Lancellotti, para quem a ascensão de Henrique pode ser um bom sinal de novos tempos na igreja evangélica. Para o pastor, ainda falta chão nessa direção, um caminho longo e exaustivo que ele percorre com notável disposição e leveza.