Um turbilhão passou pela minha cabeça quando pisei de novo na quadra da Grande Rio, minha segunda casa há dezenove anos. Meu coração estava aos pulos ao cumprimentar Marisa Furacão, diretora da ala das passistas. Ainda é julho, mas os ensaios para o Carnaval de 2024 já caminham a todo o vapor. Sem o antebraço esquerdo e com o corpo ainda anestesiado após doze dias em coma, em decorrência de uma cirurgia de retirada de mioma seguida de várias complicações, consegui sambar. Parecia uma gringa, ainda sem o gingado, com o corpo todo duro, mas dancei sem parar, graças ao incentivo que recebi dos colegas da agremiação.
Em 2022, quando a Grande Rio conquistou o título pela primeira vez, eu atravessei a Passarela do Samba com a barriga muito inchada, já prejudicada pelos problemas no útero. Marisa me deixou desfilar com uma condição: eu deveria procurar um médico logo depois do feriado. Sempre fui magrela, então me assustei quando surgiu um ovinho na barriga em 2018. Na época, as médicas que me atenderam disseram para eu não me preocupar. Mas, em meados do ano passado, passei a sentir muita cólica e a conviver com sangramentos intensos. Aí comecei um périplo por clínicas da família na Baixada Fluminense.
Após muitas idas e vindas, consegui marcar para 3 de fevereiro a cirurgia no Hospital Estadual da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, onde moro. Só me lembro de entrar no centro cirúrgico e de acordar, quase duas semanas mais tarde, no Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro, no Humaitá, sem uma parte do braço. Foi um choque. O desespero era tanto que pensei que tivesse a ver com o efeito dos remédios, mas a enfermeira me avisou que a amputação foi o único jeito de me manter viva. Ela também me disse que meu útero havia sido retirado.
A Secretaria estadual de Saúde nega a possibilidade de erro médico, mas ainda estamos aguardando o fim da investigação da Polícia Civil. Falando em português claro: sou preta, pobre, da Baixada. Acredito que os médicos imaginaram que eu iria morrer e seria mais um caso esquecido. Mas eu estou viva e bem de saúde para contar a minha história. Sou muito grata às equipes que cuidaram de mim após a amputação. Já discuti muito com Deus e sofro constantes crises de choro. Não tenho mais braço, não posso mais gerar um filho e não consigo mais trabalhar como trancista, profissão que herdei da minha mãe, Ana Maria, e exercia com amor e dedicação desde os 16 anos.
Felizmente, consegui voltar a sorrir. Meus amigos lançaram uma vaquinha para me ajudar a cobrir os gastos pessoais e fui ao shopping sacar os valores. Lá, dei de cara com a Escola de Moda Yuri Graneiro. Resolvi bater na porta, e o próprio dono me recebeu e me convidou para participar do curso de modelo. Parecia sonho, uma daquelas histórias de Cinderela. Foi assim que acabei participando do desfile Eco Fashion, em junho. Meu figurino foi produzido por mim e por Lukas Matarazzo, com sacos de lixo, canudinhos, talheres de plástico. Juntamos tudo e deu certo. Nesse dia, me maquiei e senti que um pouquinho da minha autoestima despertou. Ela andava adormecida.
Quando vi minha foto estampada no mesmo jornal que noticiou a amputação do meu braço, fiquei toda boba e, claro, mais uma vez chorei. Diariamente recebo mensagens de mulheres que passaram por situações semelhantes, o que me dá força. Cogito inclusive processar o Estado. Sei que preciso viver um dia de cada vez, sem projetos de longo prazo, mas uma certeza eu tenho: estarei na Marquês de Sapucaí em fevereiro de 2024, desfilando de vermelho, verde e branco. O samba ninguém me tira.
Alessandra Silva em depoimento a Marcela Capobianco