Eu estava em Paraty. Sete dias. Era virada do ano — na medida em que isso ainda existe depois de 2020. De qualquer forma, me comportei como de costume. Como se nada tivesse acontecido. Seguindo as convenções do mundo de antes. Cumprindo os protocolos (essa palavra nunca mais vai ser a mesma, mas vamos lá…). Branco, champanhe, abraços à meia-noite, aquela animação programada, meu sentimento de inadequação gritando em caixa-alta sob cada centímetro do look (outro vocábulo suspeito) da ceia.
Engraçado como tem gente que passa a vida toda esperando alguns poucos dias que deem sentido a todos os outros. Às vezes é o dia do casamento, o do nascimento ou da formatura de um filho, noutras, o primeiro instante de uma aposentadoria planejada durante mais de trinta anos. Ou mesmo as festas de sempre: as de dezembro, de aniversário, dias santos, e até o show anual do Roberto Carlos — que, a mim, parece igual há vinte anos, mas isso deve ser ignorância da colunista.
Enfim; datas. Respeito, eventualmente sigo, mas confesso ser mais pela anarquia. Gosto de comemorar sem agenda, e decidir, no meio da tarde, que à noite vai haver um festão de dois, seja pra ouvir o último Tom Zé, pra ver a mais recente temporada de Succession, pra estudar os olhos do meu amor.
Pra mim, o que justifica a participação nessa novela, onde a gente precisa de um papelzinho verde pra nascer, outro pra morrer e um terceiro com foto enquanto você está entre uma coisa e outra, é simplesmente o elenco. E o elenco, ahhhh, o elenco pode ser carnaval o ano inteiro. Motivo pra vestido de lantejoula, flores na sala e vontade de acordar. Meu calendário, minhas regras.
Passei meus últimos dias com Nara Leão, e, preciso confessar ao leitor, não consigo pensar em nada menos do que uma união estável com duração infinita. Que mulher era aquela, Brasil? Ou melhor, que mulher é aquela? O homem passa, a obra fica, dizia Domingos Oliveira. A mulher, então, Domingos, a mulher não passa, a mulher passarinha, meu amigo.
É, sim, é claro que eu já conhecia a sua obra — João e Maria e Saltimbancos me foram dados praticamente na mamadeira —, mas sua voz, fora do canto, me era inédita. Suas entrevistas, sua cabeça, suas bravura e liberdade só agora chegaram aqui, e já chegaram mudando tudo. Porque as palavras de Nara não só me abriram o mar, com a alegria que só a descoberta de alguém pode proporcionar, como também me trouxeram o barco.
“As palavras de Nara não só me abriram o mar, com a alegria que só a descoberta de alguém pode proporcionar, como também me trouxeram o barco”
Dá pra ser musa e depois “desmusar”? Dá pra cantar João Gilberto e depois Dominguinhos? Zé Keti e depois Kleiton e Kledir? Chico Buarque e, em seguida, Caetano Veloso? Edu Lobo e, depois, Erasmo Carlos? Ou Fagner? Dá pra fazer sucesso e depois querer cuidar de filho? Casar de branco e depois namorar quem quiser? Falar de amor e depois de política — e depois de amor, de novo?
Pra Nara, dava.
E pra gente, com um pouco de coragem, também.
Reta, franca, profunda, rápida, inteligente, autêntica, destemida e absurdamente talentosa. A voz delicada, que na verdade era firme e precisa como flecha de Oxóssi, como diz Jorge Mautner, era — e é — pra mim, até hoje, a grande voz da música brasileira. A que mais me emociona, a que mais me traz pra casa, a que mais me leva pra rua, a que eu ouço com o coração mais aberto, talvez justamente pela não imposição do discurso. Já tem muita gente gritando por aí. Melhor do que o silêncio, só João, escreveu Caetano. Melhor do que o silêncio, só Nara, reescrevo eu.
Meu 2022 só começou de verdade ao assistir à série de Renato Terra no Globoplay. Talvez porque eu também seja de festejar pequenininho. Talvez porque precisasse me lembrar que ter opinião não é defeito e que, embora dê trabalho, a chance de se ser quem se é, e de quebra iluminar alguém no caminho, faz tudo valer a pena, e o cavalo virar herói.
Meus dias na água da Costa Verde, a despeito das regras de réveillon, foram a cama perfeita pra receber Nara Leão e seu canto livre. Na Mata Atlântica que dividi por anos com meu saudoso pai, lembrei que gosto de nadar, que fui educada por marés e que minha rebeldia pode ser bonita.
Obrigada, Nara.
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