Com sessões lotadas, teatros cariocas celebram retorno em peso do público
Após um esticado período pandêmico, que levou as salas a fechar as portas, os palcos da cidade voltam a todo o vapor, com opções de alta qualidade
Durante meses e meses, o cotidiano das pessoas foi profundamente afetado pela pandemia, que atingiu em cheio departamentos da vida naturalmente associados a aglomerações. E assim foram fechados, um a um, estabelecimentos comerciais, escolas, escritórios — e a cena cultural ficou adormecida. Alguns artistas, em movimento de adaptação frente à incontornável realidade, se lançaram em lives, grupos de estudos on-line e até espetáculos virtuais, geralmente solo, dadas as restrições ao contato humano.
Para uma parcela deles, a experiência acabou se revelando enriquecedora, mas faltava algo precioso e insubstituível: estar frente a frente com o público. E eis que, após quase dois anos, as cortinas de veludo começam a se abrir com ânimo renovado, proporcionando a atores e plateia o programa completo. Ao encerrar a primeira semana de apresentações do stand-up Histórias do Porchat, com sessões prorrogadas até 20 de novembro no Teatro Casa Grande, no Leblon, Fábio Porchat resumiu à mulher: “Estou me sentindo engraçado de novo.” A sensação de voltar ao velho normal o fez valorizar como nunca o modo presencial. “Claro que as pessoas riem na internet, mas, quando você tem o riso ao vivo, parece um carimbo dizendo: ‘é engraçado’”.
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O hilário stand-up é um bom exemplar da atual leva em cartaz na cidade, com apresentações registrando salas lotadas e estendendo suas temporadas. A alta procura tem a ver, de um lado, com a qualidade da safra que agora toma os teatros e, de outro, com a demanda represada após tanto tempo sem acesso à vida cultural. Autor da comédia dramática A Tropa, com Otávio Augusto, na Casa de Cultura Laura Alvim, e tradutor de Três Mulheres Altas, com Suely Franco, Deborah Evelyn e Nathalia Dill, no Copacabana Palace, Gustavo Pinheiro destaca que o sucesso acompanha várias das peças espalhadas pelo Rio, não importa o estilo.
De Charles Aznavour, um Romance Inventado, com Sylvia Bandeira, na Sala Marília Pêra, e Clarice Niskier em A Esperança na Caixa de Chicletes Ping Pong, na mesma Laura Alvim, a O Espectador, no Teatro Poeira, com Marieta Severo, Renata Sorrah, Andrea Beltrão e Ana Baird, são muitas as temporadas com a bilheteria já esgotada. “O que está fazendo lotar tantas salas é o evento teatral, independentemente do gênero, comédia ou drama. Tem espaço para todo mundo, e isso é motivo para celebrar”, enfatiza o dramaturgo.
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O afã por contato social depois de um período bem maior do que o imaginado privado dele é um dos motores por trás da avidez em bater perna até o teatro e tomar parte de uma atividade vivida coletivamente. Há um claro sentimento de tempo perdido, que precisa ser recuperado — o que se revela também em outros palcos, como em recentes festivais de música no país.
O regresso em massa às plateias conta ainda com outro ingrediente que pesa a favor: passado o marasmo pandêmico, uma ala da população quer apoiar os artistas e a cena cultural, movimentando dessa maneira a economia local. E, com peças de nível elevado em cartaz, a diversão é garantida. “Atrações como shows e peças de teatro são capazes de proporcionar um item que as pessoas buscam a cada dia mais — experiências imersivas e interativas”, diz Isabela Petrosillo, pesquisadora do Lab de Tendências da Casa Firjan.
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Não é possível reproduzir em casa o que o teatro proporciona in loco, frisa a especialista. E justamente por isso ele atrai multidões, enquanto os cinemas ainda não voltaram à antiga forma — bons filmes podem ser consumidos facilmente do próprio sofá, e com uma diferença de tempo pequena entre a estreia nas salas de exibição e a chegada ao streaming. De acordo com dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), no primeiro semestre de 2022, 44,8 milhões de ingressos foram vendidos, cerca de metade do registrado em 2019, 88,3 milhões.
A vivência que o teatro oferece não encontra paralelo com o que pode ser consumido on-line. “O teatro envolve uma química entre a plateia e os atores. Um espetáculo nunca é igual ao outro, cada público tem uma reação diferente”, ressalta a atriz Eliane Giardini, em cartaz no Teatro Clara Nunes com Intimidade Indecente, ao lado de Marcos Caruso. Eles acabam de prorrogar a temporada para atender à alta procura. A atriz conta que nunca teve, em quatro décadas de ofício, público tão vasto. “Da estreia até hoje, o espetáculo está lotando alucinadamente. A peça tem uma hora, mas acaba levando mais meia hora por causa das risadas”, conta Eliane, com justificável entusiasmo.
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A internet é outro motor que ajuda a atrair pessoas ao teatro. Na pandemia, diversos artistas encenaram textos on-line e alcançaram uma turma que nunca tinha ido a um espetáculo. Presidente da Associação dos Produtores de Teatro (APTR), o produtor Eduardo Barata detecta uma mudança nas plateias. “Antes, a maior parte dos frequentadores de peças eram as carinhosamente chamadas “velhinhas das vans”, que vinham em espécies de excursões. Hoje, a presença jovem aumentou substancialmente”, pontua. “Acho que muita gente descobriu o teatro na internet”, diz Barata. As redes sociais também contribuem, e muito, para as ótimas bilheterias. “Você vê um amigo no teatro e, se ele curtiu uma peça, quer viver aquela experiência também”, diz Isabella Petrosillo.
A bem-vinda ressurreição dos palcos cariocas vem após um triste capítulo em que a cidade assistiu a uma sequência de fechamentos de salas. O Teatro Glória, no hotel homônimo, ficou abandonado desde 2013, assim como a construção que o abriga. Agora, o edifício de 1922 vai se converter em um prédio residencial, mas não contará com sala de espetáculos. O Centro Cultural Veneza virou um espaço para eventos corporativos. Com as portas cerradas desde 2017, o Teatro do Jardim Botânico, por sua vez, vai se tornar um local de atividades para o público infantojuvenil, previsto para inaugurar em novembro.
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O Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes, um dos mais tradicionais da cidade, prestes a completar 150 anos, paralisou sua agenda desde o início de 2020. A Secretaria Municipal de Cultura explica que ele passará por uma obra a partir de novembro e deve estar pronto em 2023. Já o Teatro Villa-Lobos, de 1979, está desativado desde que foi atingido por um incêndio, em 2011. Responsável pela gestão dos palcos estaduais, a Funarj explica que se encontra em andamento um processo licitatório para viabilizar a reconstrução do teatro com recursos da iniciativa privada. “Em 2016 e em 2019, houve chamadas públicas, mas não apareceram interessados”, disse a fundação, por meio de nota, a VEJA RIO.
Neste momento, felizmente, são novos e mais auspiciosos ventos que sopram a favor da paisagem teatral carioca. Salas que estavam às moscas, acumulando pó, voltaram à ativa. É o caso dos teatros Copacabana Palace, reaberto em dezembro de 2021; do Prudential, na Glória; do XP Investimentos, no Jockey; e do Brigitte Blair, em Copacabana, que recebeu auxílio financeiro da Funarj via edital. Além disso, o antigo Cine Palácio se transformou no Teatro Riachuelo e o Salão Assyrio, no Theatro Municipal, que, antes subocupado, agora vem recebendo shows e peças.
Outra novidade é o retorno das matinês, que fizeram grande sucesso no passado e começam a ressurgir em vários cantos. “Se você quiser, às 20 horas está de pijama em casa. É um horário confortável”, lembra Gustavo Pinheiro. “As matinês eram muito disseminadas nos anos 90, quando sobretudo senhoras assistiam às peças, tomavam seus chás e iam embora. Hoje também tem aquele cara que vai emendar um programa depois”, arremata.
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Palcos mundo afora ainda sentem o baque dos tempos em que as cortinas baixaram. Em setembro, uma reportagem do The New York Times relatava a queda de público em espaços icônicos da cidade, como o Met Opera — ali, a ocupação caiu de uma média de 75% da capacidade máxima para 61%. Durante a temporada 2021/2022, que estreou devagar e atrasada, a Broadway teve 6 860 apresentações vistas por 6,7 milhões de pessoas, que renderam 845 milhões de dólares. Já de 2018 para 2019, a derradeira temporada pré-pandêmica, houve 13 590 apresentações vistas por 14,8 milhões de pessoas, amealhando 1,8 bilhão de dólares — quase o dobro em todos os quesitos na comparação com os dias de hoje.
Algumas companhias chegaram a decretar falência. O estrago não foi pior porque o governo de Joe Biden e doadores privados prestaram assistência financeira aos grupos. “A atração magnética dos sofás das pessoas foi maior do que eu, como produtor, havia previsto”, reconheceu Jeremy Blocker, diretor-gerente do New York Theater Workshop, do circuito off-Broadway.
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O pendor carioca para a vida social contribui para tirar gente de casa. “O Rio é gregário, a cena cultural aqui é intensa, você sente isso. Outro dia passei pela feira da Glória e ouvi um pagode, estava uma animação só”, comenta Vera Holtz. Quando os teatros tiveram de trancar suas portas, a atriz fez suas famosas fotos performáticas para o Instagram, mas nada de atuar em peça.
No mês passado, ela finalmente retornou aos palcos, no CCBB, com o espetáculo Ficções (que ela prefere chamar de documentário cênico, e não monólogo, já que interage com o músico Federico Puppi, autor da trilha sonora). “Não tem nada melhor do que ver o público. Eu começo de olho fechado, respiro e sinto aquela energia boa, cada dia diferente do outro. Isso é único da experiência teatral.” Fica aqui a tradicional forma de desejar boa sorte na estreia de uma peça: “merda” para a programação teatral carioca.
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