Para a travessia, arte (diariamente)
Durante a pandemia do coronavírus, a arte é o balão de oxigênio que nos salva
“O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia” (Guimarães Rosa)
Nos últimos tempos, constatamos que a cultura passa ao largo das prioridades do atual governo, que não a percebe como um campo estratégico e promove o desmonte do setor. Há uma crise de várias dimensões e a cultura foi das primeiras áreas amplamente atingidas. Com indignação, assistimos ao crescente ambiente antagônico que revela o lamentável desprezo do Estado pelo fazer artístico e a consequente desvalorização da cultura brasileira, esse elemento que nos funda. Lembrando que, além de se constituir como a mais autêntica expressão da subjetividade humana, a cultura é também um importante vetor de desenvolvimento econômico que contribui diretamente para a geração de renda.
Um país de dimensão continental, tão diverso quanto o Brasil, não pode prescindir de comprometimento com o crescimento sustentável de seu patrimônio simbólico. É na cultura que residem as saídas mais potentes de inclusão social, de redução das desigualdades e de fortalecimento do Estado Democrático de Direito, ao aliar pensamento crítico e experiência estética.
Diante do cenário acima, me parece irônico e didático que, em isolamento social indiscutível, sejam as manifestações artísticas os fundamentos que nos sustentarão na longa travessia que temos pela frente. As artes visuais, a música, a literatura, o teatro, o cinema e a dança nos serão redentores na aridez do caminho. Ao criar poéticas de encantamento e ao ritualizar plasticamente o cotidiano, diante de um real tão avassalador, a arte é e será sempre o balão de oxigênio que nos salva.
Designada por Freud como uma forma de sublimação capaz de dar sentido ao vazio do irrepresentável, é a arte que nos fará resistir. Ela traz em si uma espécie de sutura simbólica, na potência única de refazer a realidade ao intervir no mundo da ação para transfigurá-lo. A experiência de êxtase diante de uma tela, de um livro, ou de uma ópera nos afeta as camadas mais profundas, e tal atravessamento se reflete diretamente em nossos modos de ação na vida real.
O ser humano é essencialmente um ser de razão e a arte é um dos poucos dispositivos capazes de ultrapassar o limite do cotidiano e de suas significações. Há também outra faculdade, igualmente humana, que origina o movimento criativo: a imaginação, essa que nos liberta da realidade e aponta para o que ainda não é, o que ainda não há. Que do isolamento, surja o novo (a criação é algo bastante solitário). Que venha um tempo fértil e reverente à arte. E que, ao final, estejamos todos imunes à ignorância que hoje nos assola.