Esta montanha, este bondinho deslizando para lá e para cá, estes cabos pretos no céu, isso tudo é como se já fosse parte de nós. Estão aí há tanto tempo ? um século ? que praticamente se incorporaram às retinas, e muitos nem notam o privilégio que é olhar para eles. Simples assim: olhar para eles. Cariocas, brasileiros e especialmente os que vêm de fora nos visitar se encantam com a viagem no teleférico, tiram centenas de fotos e, lá do alto, vislumbram aquele misto de natureza e cidade tão típico do Rio.
Símbolo deste lugar, o bonde ladeado pelas montanhas carrega uma estética tão harmoniosa, e ao mesmo tempo tem formas tão simples, que parece desenho de criança. Hoje ele virou cinzeiro e almofada. Aparece estampado em camisetas, serve de locação para filmes, empresta o seu cenário para comercial de banco e de carro. Tem história. Contá-la é o objetivo deste especial de VEJA RIO. Vamos falar destes 100 anos, que em certo sentido passaram voando. E dizer que tudo começou com o sonho de um engenheiro vindo do interior.
Nascido na cidade de Cantagalo, perto de Friburgo, Augusto Ferreira Ramos pôde conhecer meio Brasil, sempre a reboque de suas experiências na área de engenharia. Deu aulas na Escola Politécnica de São Paulo, ajudou a sanear Curitiba e construiu usinas no Espírito Santo. Mas foi no Rio que sua mais famosa obra se ergueu: a Companhia Caminho Aéreo Pão de Assucar ? nome escrito dessa forma até a reforma ortográfica de 1943. Seu devaneio era ligar o chão ao topo da montanha. Teve a ideia em 1908, após visitar, na Urca, uma exposição em homenagem ao centenário da Abertura dos Portos. Percebeu que o bairro apresentava potencial turístico e, no ano seguinte, desenhou o “projecto de um cable-way para passageiros”. Tinha amigos influentes, conseguiu a aprovação do governo do então Distrito Federal e pôs mãos à obra.
Melhor dizendo, passou a coordenar aqueles que de fato pegaram no pesado. Cerca de 800 operários estiveram envolvidos no projeto, durante três anos. A parte mais difícil foi levar a maquinaria para o topo das montanhas. Eram 4?000 toneladas de equipamento. A equipe precisou se valer, por exemplo, de pequenos veículos de tração animal. E, quanto aos fios condutores do sistema, os homens faziam fila, distantes 2 metros uns dos outros, segurando-os com as mãos como se brincassem de cabo de guerra ? mas sem adversários puxando do outro lado.
Tudo, em relação à logística da operação, era inédito. Àquela altura já existiam dois bondinhos desse tipo no mundo: um na Espanha, outro na Suíça, ambos em regiões montanhosas. O do Rio seria o primeiro a ser implantado em área urbana, e boa parte do mundo olhava para o Brasil desconfiada, num misto de incredulidade e zombaria. Mas, na manhã de 27 de outubro de 1912, a companhia festejava a primeira viagem. Num Rio logicamente com Corcovado, mas ainda sem Cristo Redentor, 567 felizardos ? e, por que não dizer, corajosos ? pioneiros subiram ao Morro da Urca dentro do “camarote carril”, como se dizia na época. Foram de 22 em 22, pois a cabine era pequena (no módulo atual cabem 65 pessoas). Tornaram-se, assim, os primeiros a deixar recados nos históricos, e até hoje bem preservados, livros de assinatura. A outra perna do trajeto seria inaugurada meses depois, em janeiro de 1913, levando turistas a quase 400 metros de altura, no Pão de Açúcar.
Formada há 500 milhões de anos, essa montanha que parece vigiar a entrada da Baía de Guanabara guarda uma série de lendas. Com formas vindas de contrações e enrugamentos da costa, com retoques provocados por ventos, chuvas e tempestades ao longo de sua história, o Pão de Açúcar é um deleite para místicos. A principal questão gira em torno do que seria a figura do íbis, um pássaro da mitologia egípcia, observado com mais nitidez do Aterro. O desenho poderia ter sido esculpido não pela natureza, mas por civilizações que aqui estiveram muito antes de o engenheiro Ramos desbravar aquele paredão.
O homem que idealizou o sistema ficou à frente da companhia até 1934, dando lugar ao banqueiro Carlos Pinto Monteiro ? que, na direção da empresa, passou por maus bocados, por exemplo, durante a Intentona Comunista, em 1935: tiros atingiram os cabos, e o bondinho teve de parar por um tempo. Ele voltaria a ser comandado por um engenheiro nos anos 60. Era Cristóvão Leite de Castro, velho amigo do fundador. Foi ele quem modernizou o sistema, em 1972, comprando na Europa vagões em forma de bolha e, o mais importante, transparentes ? Cristóvão os definia como “diamantes”. Sua filha, Maria Ercília Leite de Castro, é quem preside a companhia, desde 1993. Ela tem como braço direito o italiano Giuseppe Pellegrini, 74 anos, diretor técnico do sistema, conhecedor de cada peça da engrenagem do bondinho e cheio de histórias para contar. Ele afirma que escalou mais de 3?000 vezes o Pão de Açúcar ? também é alpinista ?, lembra-se de muitos filmes e produções que já conteceram lá em cima (de cenas de 007 a “fotos de mulher pelada”) e fala do que talvez tenha sido o momento mais difícil de sua gestão, quando, em 2000, um cabo de tração se rompeu e a composição, lotada, ficou horas sem sair do lugar. Os turistas foram resgatados por um bonde de apoio. “Ninguém se feriu com gravidade”, suspira.
O cuidado com a segurança segue como prioridade da companhia, que anuncia para o ano que vem novas catracas na entrada e na saída das estações, para agilizar o escoamento dos passageiros. Também deve ser implantada em breve a venda de bilhetes pela internet. Atendendo a mais de 1,3 milhão de passageiros por ano, o bondinho se prepara para um acréscimo estimado em pelo menos 10% nas semanas de Copa do Mundo, em 2014, e de Jogos Olímpicos, em 2016.