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Um século de emoções

Flamengo e Fluminense se enfrentam neste domingo (8) para comemorar os 100 anos do clássico insuperável em charme e que traz uma história de amor e ódio desde o seu nascimento, quando uma dissidência nas Laranjeiras deu origem ao futebol do rival

Por Felipe Carneiro e Renan França
Atualizado em 5 jun 2017, 14h28 - Publicado em 11 jul 2012, 17h17
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    Pouco importa que o Maracanã (oficialmente Estádio Mário Filho, um rubro-negro) esteja fechado ou que o Campeonato Brasileiro ainda não tenha esquentado. O fim de semana esportivo no Rio será de festa. Na tarde deste domingo (8), Flamengo e Fluminense entram no gramado do estádio do Engenhão (batizado de João Havelange, um tricolor) envolvidos numa atmosfera que transcende a simples disputa por três pontos. O jogo vale muito mais que isso: ele celebra os 100 anos do Fla-Flu, que foi disputado pela primeira vez no dia 7 de julho de 1912, no campo das Laranjeiras. A exemplo do Corcovado e do Carnaval, o clássico se tornou não só um patrimônio da nossa cidade mas também um símbolo da alma carioca, reconhecido no Brasil e no exterior. Um confronto singular, que nasceu sob um enredo de brigas, traições, superação e reviravoltas. “O Fla-Flu é o único jogo que tem um mito de origem, porque o futebol do Flamengo surgiu de uma dissidência do Fluminense”, afirma o rubro-negro Ronaldo Helal, pesquisador do grupo Esporte e Cultura, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

    Em seu nascedouro há de fato uma dramaticidade que não se vê em nenhum outro embate. A duas rodadas do término do Campeonato Carioca de 1911, um grupo de jogadores do Fluminense se rebelou contra o ground committee, uma espécie de comissão técnica, à qual cabia a atribuição de escalar o time. Apesar do impasse, todos os titulares foram a campo normalmente nas partidas finais e conquistaram o título com um aproveitamento de 100%, um feito até hoje único na história da competição regional. Porém, como nenhum dos lados arredou pé em sua posição, a intransigência resultou na debandada de nove atletas das Laranjeiras para criar o departamento de futebol do Clube de Regatas do Flamengo. Fundada em 1895, a agremiação até então se limitava a competir nas provas de remo, modalidade que, ao lado do turfe, era a mais popular da capital da jovem República. Assim, na temporada seguinte, os dois clubes davam início à saga dos gramados que ao longo de um século totaliza 378 encontros (veja o quadro na pág. 19). No campo das Laranjeiras, abarrotado com 800 pessoas – os cavalheiros de terno e chapéu, as damas de vestido longo -, os rivais se enfrentaram pela primeira vez. Naturalmente, com quase todos os titulares egressos do campeão inquestionável do ano anterior, o esquadrão rubro-negro aparecia como amplo favorito. Mas, para surpresa geral, o Fluminense equilibrou as ações e, com um gol no último minuto, superou o oponente por 3 a 2. Para o escritor Nelson Rodrigues (1912-1980), autor de frases definitivas sobre o clássico (destacadas ao longo desta reportagem), aquele resultado heroico foi determinante para toda a mística que passou a envolver o Fla-Flu. “Se o Flamengo tivesse ganho, a rivalidade morreria ali. Mas a vitória tricolor gravou-se na carne e na alma flamengas”, sentenciou.

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    Naquela época, quando o Rio de Janeiro se encaminhava para atingir 1 milhão de habitantes, a sociedade se reunia nos clubes, que aglutinavam em suas sedes moças e rapazes bem-nascidos. Era o caso de Flamengo e Fluminense, que atraíam a elite carioca e permaneceram assim por muito tempo. A despeito do êxodo de 1911, os sócios tanto de um quanto do outro mantiveram uma relação de cordialidade, com a disputa limitada ao que ocorria dentro do gramado. Em meados da década de 10, o departamento de futebol do Flamengo arrendou por quinze anos um terreno pertencente a Arnaldo Guinle, patrono do tricolor, que ficava em frente ao campo das Laranjeiras. Quando expirou o acordo, as duas agremiações deram nova prova do clima amistoso. Durante boa parte dos anos 30, antes da construção de seu estádio na Gávea, o rubro-negro treinou e mandou seus jogos no campo rival. “Eram clubes muito ligados, unha e carne mesmo”, destaca o jornalista rubro-negro Roberto Assaf, autor do livro Fla x Flu, o Jogo do Século, escrito em parceria com o administrador de empresas tricolor Clóvis Martins.

    O clássico ganhou impulso e atingiu a dimensão atual graças à interferência de dois irmãos que eram craques nas letras: Mário Filho e Nelson Rodrigues. Homem de imprensa e com faro apurado para criar e badalar eventos esportivos, Mário promoveu como ninguém o jogo, que depois viria a adquirir contornos épicos nos textos do irmão mais novo. Acrescenta-se a essas iniciativas o fato de o Rio, na qualidade de capital do país, ter sido o vetor de novidades, ideias e modismos que ressoa-

    vam em todo o Brasil. “Fla-Flu é um nome muito sonoro, o que também contribuiu para a criação do mito. Uma boa história e um bom nome são sempre um prato cheio”, acredita a crítica de teatro tricolor Bárbara Heliodora, filha de Marcos Carneiro de Mendonça, que foi goleiro e presidente do Fluminense. Já o escritor Ruy Castro, autor de O Vermelho e o Negro – Pequena Grande História do Flamengo, que acaba de ser reeditado pela Companhia das Letras (precisa dizer para qual time ele torce?), faz um adendo de ordem visual. “É o jogo mais bonito do planeta, pelo choque das cores nas arquibancadas”, afirma.

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    O centenário confronto tem apelos que realmente transcendem a mecânica de um mero jogo de futebol. “Não me falem em Barcelona e Real Madrid. O Fla-Flu ainda é o mais glamouroso do mundo”, dispara Nelson Rodrigues Filho, tricolor e cronista esportivo como o pai. Descontada a hipérbole, que outras agremiações no mundo podem se gabar de ter 32 confrontos entre si com mais de 100 000 pessoas nos estádios? Um desses embates perdura até hoje como o recordista de público em uma partida interclubes. No dia 15 de dezembro de 1963, mais de 194 000 pessoas (177 000 pagantes) hiperlotaram o Maracanã para ver a decisão entre os times. Um dos presentes era o menino Leovegildo Lins da Gama Junior, que, aos 9 anos, fora acompanhar o pai e o tio tricolores. “Nunca vi um estádio tão cheio”, lembra ele, que viria a se tornar um dos grandes ídolos da Gávea e o jogador com o maior número de participações na história do confronto: 48. Curiosamente, apesar de serem os dois clubes com o maior número de títulos cariocas, Flamengo (32) e Fluminense (31) jamais decidiram um torneio nacional. Mesmo nos estaduais, eles só se encararam como finalistas em onze edições (8 x 3 para o Flu) – pouco para uma disputa secular que envolve duas potências do futebol. Vasco e Flamengo, por exemplo, mediram forças em 23 decisões, com doze triunfos rubro-negros e onze cruz-maltinos.

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    Mas os jogos entre as representações da Gávea e das Laranjeiras, por trazerem boas ou más recordações, ou pelo enredo inusitado de alguns deles, ficam registrados para sempre na memória do torcedor (veja o quadro na pág. 22) – e, às vezes, até na pele. O escritor Mario Vitor Rodrigues, 38 anos, neto de Nelson Rodrigues, tatuou no braço direito “25/06/95” nas cores grená e verde. “Foi o dia da maior emoção da minha vida”, justifica ele. Naquela data, o tricolor venceu o rival por 3 a 2 e conquistou o campeonato regional depois de dez anos de jejum. O gol da vitória foi marcado pelo atacante Renato Gaúcho, de umbigo, nos minutos finais, quando o Fluminense tinha dois jogadores a menos em campo. Esse Fla-Flu da barriga, como ficou conhecido, tal qual o da Lagoa, o da despedida de Zico e o do recorde de público, figura na galeria de antologia do clássico (veja o quadro na pág. 20).

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    Herói e vilão daquela conquista, dependendo do ponto de vista, Renato Gaúcho reforça a hoste, inaugurada por Alberto Borgerth há 100 anos, dos craques que vestiram as duas camisas. “O Fla-Flu é diferente de tudo o que já disputei. Fico feliz por ter conseguido ser ídolo das duas torcidas”, diz ele, diplomaticamente. Além de Renato e Borgerth, a lista dos que vestiram ambas as camisas inclui nomes do calibre de Gerson, Paulo César Lima, Doval, Edinho, Cláudio Adão e, mais recentemente, Thiago Neves, campeão carioca pelo Fla no ano passado e pelo Flu nesta temporada. Mas o tempo da camaradagem ficou para trás. Thiago Neves sabe que vai ser alvo da torcida rubro-negra no confronto deste domingo, bem como foi da tricolor durante sua temporada na Gávea.

    Não é de hoje que o antagonismo entre as duas equipes consanguíneas se acirrou. A partir dos anos 50, a ligação umbilical foi ficando num passado cada vez mais distante. O Flamengo incorporou de vez o papel de representante das massas, enquanto o Fluminense se manteve identificado com os estratos mais abastados. “O Fla-Flu é o clássico mais nervoso de todos”, enfatiza o diplomata Pedro Cunha e Menezes, um dos autores de Fluminense Football Club – 100 Anos de Glória, publicação oficial sobre o centenário do clube. “Ficou uma história mal resolvida, de que talvez as pessoas não se deem conta hoje, mas a raiz está lá no fundo.” Desse passado remoto, sobraram uns poucos recortes de jornais. Na recém-inaugurada Sala de Troféus das Laranjeiras, não existe memorabilia referente aos primórdios do jogo. Na Gávea, que promete começar a construir em breve o maior museu do gênero no continente, tampouco há algum material. Não há de ser nada. A falta de documentação nunca atrapalhou a mística do confronto. Afinal, se o Fla-Flu nasceu quarenta minutos antes do nada, como escreveu Nelson Rodrigues, ele vai resistir até quarenta minutos após o Juízo Final.

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