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A operação de salvamento da Santa Casa de Misericórdia

Com mais 400 anos de história, a Santa Casa continua funcionando graças ao esforço de médicos e funcionários dedicados

Por Pedro Moraes, Carolina Barbosa Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 9 Maio 2017, 19h14 - Publicado em 6 Maio 2017, 00h00
Santa Casa de Misericordia
Corredor do hospital geral: a instituição busca recuperar a credibilidade do passado (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

À primeira vista, o majestoso prédio histórico instalado no número 206 da Rua Santa Luzia parece completamente abandonado. A imponente fachada formada por um grande pórtico ornamentado por colunas dóricas e frontão triangular contrasta com o interior, onde se emaranham longos corredores com paredes recobertas por painéis de azulejos portugueses desfalcados, arruinadas por infiltrações. Mais antigo hospital da cidade — fundado no século XVI pelo padre jesuíta José de Anchieta —, a Santa Casa da Misericórdia agoniza em meio à sua mais grave crise. Com as finanças rapinadas por mais de duas décadas de administração nefasta, a instituição acumula hoje uma dívida de mais de 300 milhões de reais. A situação precária das instalações levou à sua interdição pela Vigilância Sanitária e, com isso, à interrupção nos repasses do Sistema Único de Saúde (SUS), um golpe duríssimo para uma entidade que recebe pacientes que não possuem plano de saúde. Diante desse panorama, surpreende o estoicismo de um grupo de médicos abnegados que continua trabalhando por lá, sem desanimar. Movida pela devoção aos princípios cristãos e ao Juramento de Hipócrates, uma equipe de profissionais de peso vem se empenhando para devolver ao lugar a relevância que ele teve no passado. “Não é nada fácil, mas estamos arrumando a casa e atuando em conjunto para que o hospital geral volte a atender uma camada importante dos necessitados”, afirma o juiz aposentado Francisco Horta, provedor da instituição. “Mas, por enquanto, estamos funcionando por um milagre de Deus”, define.

Enfermaria Santa Casa
Médico em uma das poucas enfermarias que funcionam: adequações feitas depois da interdição (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

A operação de guerra para salvar o complexo envolve, em grande parte, um imenso esforço individual dos profissionais que dão expediente em suas salas centenárias. Diariamente, cerca de 200 pessoas formam fila na calçada em frente ao hospital, por volta das 4 da manhã. Para que ninguém volte para casa sem atendimento, os médicos que chefiam serviços usam e abusam da criatividade para levantar recursos financeiros, equipamentos, medicamentos e até melhorias na infraestrutura. “Estamos sempre promovendo ações para angariar fundos e poder oferecer o melhor tratamento possível aos pacientes”, conta o médico Fabio Barbirato, que, há quase duas décadas, fundou o setor de psiquiatria infantil da Santa Casa. Em março deste ano, obstinados em conseguir itens para um curso voltado para a formação de profissionais em mindfulness infantil, espécie de meditação, ele e sua equipe foram à região do Saara, munidos de panfletos, pedir aos comerciantes doações, como colchonetes, brinquedos e toalhas. “É uma luta, a gente mata um leão por dia, mas é muito prazeroso, é quando a medicina faz sentido”, completa. Tal engajamento está longe de ser um exemplo isolado. Responsável pelo serviço de ginecologia, o pesquisador Silvio Silva Fernandes, no cargo há sete anos, leva uma secretária particular para trabalhar na 28ª enfermaria e até tira dinheiro do bolso quando a conta não fecha. Certa vez, para adequar a unidade às exigências da fiscalização sanitária, investiu cerca de 180 000 reais em melhorias. “Mesmo com todas as dificuldades, continuamos a ser uma das áreas que mais atendem pacientes de graça”, explica.

Santa Casa de Misericordia
Entulho acumulado em uma das enfermarias fechadas: a administração desastrosa levou o hospital à ruína (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)
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Erguido em 1865, o atual prédio do hospital geral é uma joia da arquitetura do século XIX, mas paralelamente se tornou uma dor de cabeça para os atuais administradores da instituição. Antiquado, não atende mais às exigências dos órgãos de fiscalização sanitária. Ao mesmo tempo, é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o que torna qualquer reforma ou intervenção na estrutura uma empreitada trabalhosa e extremamente custosa. A soma desses fatores foi o que levou à interdição do prédio e dos serviços, em outubro de 2013, por falta de condições sanitárias. A medida resultou no descredenciamento pelo SUS e secou uma importante fonte de receita. A solução já existe em forma de projeto. Há uma proposta de reforma de parte do conjunto, onde seriam construídos um novo centro cirúrgico, um centro de tratamento intensivo, o setor de esterilização e enfermarias pós-cirúrgicas, de acordo com as normas da Vigilância Sanitária. Tudo isso depende de recursos da negociação de imóveis vizinhos, vendidos para a Performance Empreendimentos Imobiliários. No acordo, 24% do prédio pertencerá à irmandade mantenedora da Santa Casa, e a nova estrutura seria construída como parte do entendimento. Apesar de o compromisso já ter sido firmado, não há prazo para o início das obras. Enquanto a nova ala não surge, os serviços permanecem funcionando parcialmente. Segundo a Superintendência de Vigilância Sanitária do estado, a Santa Casa está autorizada a manter abertos dezesseis ambulatórios e apenas pequenos procedimentos cirúrgicos podem ser feitos nas áreas de urologia e ginecologia. “Cortar o SUS de um hospital filantrópico é como tirar o sangue de um anêmico: ele morre”, diz o neurologista Sérgio Novis, ocupante da cadeira número 2 da Academia Nacional de Medicina, espécie de ABL dos médicos. “A enfermaria é fundamental no apoio ao ambulatório. Com ela fechada, vivemos um stress diário, porque não temos como acolher o doente”, desabafa Novis, 77 anos, à frente do setor desde 1997.

PACIENTES – SANTA CASA MISERICORDIA
A guia de turismo Mônica Souza: confiança nos médicos e consultas por 70 reais (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

Em tempos de crise econômica, há quem esteja recorrendo aos serviços da Santa Casa por não poder arcar com os altos custos da medicina privada tradicional. Ali, as consultas podem ser gratuitas ou cobradas, até 100 reais, dependendo da situação do paciente. Sem plano de saúde, a guia de turismo Mônica Souza, 46 anos, frequenta o consultório de ginecologia há dois anos com o mesmo médico que a atendeu no parto de sua filha, hoje com 10 anos. “É só olhar a receita do meu médico para ver a quantidade de títulos que ele tem. São professores, pesquisadores de boas faculdades. Para mim, o que conta é a qualidade do profissional e não o luxo das instalações”, diz ela. Moradora da Freguesia, na Zona Oeste, ela vai ao hospital a cada dois meses, onde paga 70 reais pela consulta.

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PACIENTES – SANTA CASA MISERICORDIA
O dermatologista David Azulay em seu consultório: atendimento ambulatorial
e até tratamentos com laser (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

Os problemas da Santa Casa acumularam-se ao longo dos anos, mas o estado crônico deve-se à gestão desastrosa — e criminosa — do antigo provedor, o advogado Dahas Zarur (1926-2014). Por mais de cinquenta anos, ele ocupou os principais postos da instituição, decidindo sobre a gerência dos bens e da administração. Entre as irregularidades apontadas pelo Ministério Público durante esse período, encontram-se estelionato, falsidade ideológica, sonegação fiscal, apropriação indébita e a construção ilegal de jazigos nos treze cemitérios municipais que até então eram geridos pela instituição. Após denúncias, em 2014, a prefeitura encerrou a concessão dos cemitérios e, dessa forma, pôs fim ao rendimento de 2,5 milhões de reais por mês. “A questão é que estamos em meio a uma disputa judicial, mas entendo que podemos resolver de forma amigável com o município. Os terrenos e as capelas pertencem à Santa Casa e não recebemos o aluguel. Isso precisa ser revisto”, pondera Francisco Horta. Outro grave problema é a gestão do patrimônio, formado por quase 1 800 imóveis, quase todos deixados por herança. Muitos estão ocupados por locatários há décadas, sem contrato. A regularização tem sido feita por uma empresa terceirizada, escolhida pela atual administração. Há ainda um enorme imbróglio com a Justiça do Trabalho, referente a dívidas de recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, impostos e salários, acumulados por anos. “Cuidamos de cinco hospitais, dois educandários e um asilo. Recebemos menores encaminhados pela Justiça, por exemplo, e não ganhamos nada por isso. Precisamos negociar nossa relação com o estado”, avalia Horta. Mesmo diante dos problemas, não há previsão de venda de novos imóveis ou demissão de funcionários — são 1 300. A ideia para reerguer a Santa Casa financeiramente vem sendo discutida entre os médicos e passa pelo aumento da capacidade de atendimento com o pagamento de consultas a preços populares. “Vamos fazer o que estiver ao alcance para que o hospital volte a funcionar a pleno vapor”, promete Hilton Koch, experiente radiologista e gestor do hospital geral.

Santa Casa de Misericordia
Silvio Fernandes, Hilton Koch e Sérgio Novis: recursos próprios aplicados nos ambulatórios (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)
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Relatos históricos mostram que o surgimento da Santa Casa coincide com a chegada da esquadra do almirante Diogo Flores de Valdés, em 1582, que desembarcou na região da extinta Praia de Santa Luzia — local onde hoje está instalado o hospital. Os marinheiros sofriam de escorbuto pela falta de vitamina C na vida no mar e foram atendidos pelos padres jesuítas que viviam no primeiro núcleo urbano do Rio. De uma choupana, foram surgindo prédios até a configuração atual, na qual o salão nobre era frequentado pelo imperador dom Pedro II. Os membros da irmandade da Misericórdia também tiveram papel preponderante na história do país. Foram eles que pagaram o advogado do julgamento do mártir da Inconfidência Mineira Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Tanto que a cruz que ele beijou antes do enforcamento está em lugar de destaque em um dos salões do prédio. Em outro episódio, o Dia do Fico, o provedor José Clemente Pereira foi um dos conselheiros de Pedro I, antes de ele anunciar aos brasileiros que não voltaria para Portugal e se manteria como príncipe regente, o que posteriormente levou à independência do país. A Santa Casa ainda tem enorme importância na história da medicina brasileira. Com a chegada da família real ao Rio, em 1808, foi fundado o primeiro curso de formação de médicos do Brasil. As aulas práticas eram ministradas com os pacientes internados. Todos os profissionais do país foram de alguma forma influenciados pela prática daquele hospital. Um sem-­número de nomes tornou-se notável a partir dos tratamentos administrados lá (veja o quadro). Posteriormente o curso foi passado para a Universidade do Brasil, transformada na década de 60 na atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ainda hoje, a instituição sobrevive como um centro de cursos de residência. Um exemplo é o da 38ª Enfermaria, criada em 1960, comandada pelo cirurgião plástico Ivo Pitanguy. Referência mundial na especialidade, o instituto atrai interessados de diversos continentes. “No ano passado, já em meio à crise, recebemos sessenta inscrições de candidatos à nossa residência, que só tem treze vagas e é atrelada à PUC-Rio. Está aí a importância dessa instituição, que não podemos deixar morrer”, atesta o cirurgião plástico Francesco Maz­zarone, discípulo de Pitanguy e chefe da enfermaria há quase vinte anos.

QUADRO SAÚDE
(Equipe/Veja Rio)
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