A noite mal havia começado quando um camburão do 15º Batalhão da Polícia Militar, em Duque de Caxias, chegou cantando os pneus e parou junto à entrada de emergência. Enquanto os policiais abriam a parte traseira do veículo, um grupo de enfermeiros e médicos ajudava a retirar dois jovens desacordados e cobertos de sangue. Levados para o Centro de Trauma, não havia mais o que fazer. Já estavam mortos. Os dois rapazes, um de 25 anos e o outro de 30, suspeitos de integrar o tráfico de drogas na Vila Urussaí, em Caxias, tinham sido atingidos por tiros de fuzil AR-15 durante um confronto com a polícia. Minutos antes, vítima de bala perdida no mesmo conflito, uma manicure de 29 anos dera entrada com o quadril perfurado por um projétil do mesmo tipo de armamento. Casada e mãe de dois filhos, ela urrava de dor enquanto uma equipe de profissionais avaliava a extensão dos danos. Eram 19h10 e ainda estava começando o plantão noturno de sexta-feira (2), o dia da semana mais agitado no Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, em Saracuruna, na Baixada Fluminense. Recordista de atendimentos a baleados no estado — e no país —, a unidade é um retrato fiel da rotina de guerra no Rio. Só em 2017, foram socorridas ali 785 vítimas de armas de fogo, uma média de 65 por mês. “Como qualquer cidadão, tenho medo de sair de casa e não voltar”, diz o cirurgião-geral Fernando Pedrosa, 47 anos, chefe da equipe médica às sextas-feiras, enquanto exibe na tela de fundo do celular uma foto dos filhos gêmeos, de 1 ano e 8 meses. “A morte faz parte da nossa rotina, mas termino o dia com a sensação de dever cumprido”, completa o médico, com especialização em ferimentos por armas de fogo em Israel.
No front dessa batalha estão profissionais abnegados que vivem sob pressão, lutam pela vida em situações-limite e vivenciam a face mais cruel da violência. Por mais que eles transmitam confiança, serenidade e, eventualmente, bom humor, o ambiente da emergência é pesado. Banhada de luz fluorescente, a estrutura concentra duas macas para atendimento imediato, doze leitos para pacientes em observação e um posto de enfermagem. Nas doze horas em que VEJA RIO acompanhou a equipe, das 7 da noite de sexta às 7 da manhã de sábado, foram 23 atendimentos, registrados em um livro de capa preta do Centro de Trauma. Em alguns momentos, via-se o congestionamento de ambulâncias na porta, com até seis veículos manobrando. Só naquela noite, o Hospital de Saracuruna, como também é chamado, recebeu quatro vítimas da violência urbana. Além dos três pacientes alvejados, no início da vigília médica, uma adolescente de 14 anos, vítima de bala perdida, foi atendida, com um projétil alojado no tornozelo esquerdo, e operada com urgência. No caso da manicure, pode-se dizer que ela praticamente renasceu — o tiro de fuzil, que dilacera tudo por onde passa, não acertou nenhum órgão vital nem artéria importante. Algumas macas adiante, um jovem de 18 anos, com olhar atônito, recuperava-se de um golpe. Ele deu entrada, após uma briga, com a lâmina de uma faca de cozinha fincada nas costas (o cabo ficou na mão do agressor) e teve um pulmão perfurado. “É adrenalina o tempo todo. Volto para casa com o corpo moído, destruído”, diz o cirurgião-geral Daniel Dias, 39 anos, que faz terapia uma vez por semana para aliviar a carga emocional da rotina imprevisível, nem sempre em condições ideais de trabalho. Estudos mostram que o volume de stress ao qual um médico desses é submetido só perde para o de um piloto de avião de caça.
Em um estado que acaba de sofrer uma intervenção federal e onde, no ano passado, se bateu o recorde histórico de apreensão de armas de grosso calibre — 499 fuzis, 130 a mais do que em 2016 —, um hospital como o Adão Pereira Nunes se prova imprescindível. Encravada em um ponto estratégico da Baixada Fluminense, a região mais violenta do Rio, e junto às rodovias Washington Luiz, Rio-Teresópolis e Arco Metropolitano, a instituição é a principal referência na rede pública estadual em traumatologia. O que mais se ouve pelos seus corredores é a sigla PAF (projétil de arma de fogo), seguida de longe por PAB (perfuração de arma branca). Entre 2014 e 2017, o número de pessoas que deram entrada na unidade atingidas por tiros saltou de 577 para 785, um aumento de 36%. Em um único dia, em setembro último, o Centro de Trauma recebeu catorze baleados sobreviventes de uma chacina. Foi naquele mesmo hospital, que também é especializado em neurocirurgia, reimplante de membros e possui uma maternidade para gestantes de alto risco, que o bebê Arthur Cosme de Melo, vítima de um tiro ainda no útero da mãe, foi operado. Atingido por um projétil que lhe atravessou o tórax e lesionou um pulmão e a coluna, em junho do ano passado, ele morreu um mês depois. “Fiquei arrasado, ele já estava começando a mexer as perninhas. É impossível não se colocar no lugar dos pais, ainda mais tendo duas filhas, como eu”, emociona-se o coordenador da neurocirurgia, Vinícius Zogbi, 40 anos, que integrou a equipe responsável por operar o bebê.
Apesar de a morte de Arthur ter virado um caso emblemático da guerra urbana, outros episódios chocantes fazem parte do dia a dia dos profissionais que dão expediente na unidade. Há duas semanas, uma ocorrência inusitada deixou os médicos estarrecidos: uma granada havia explodido no bolso de um jovem de 22 anos e provocado um estrago inimaginável. O rapaz perdeu as mãos, as pernas e os testículos. Operado por seis médicos durante sete horas, saiu do centro cirúrgico vivo, mas não resistiu no dia seguinte. “Não era minha intenção, mas acabei virando um especialista em feridos de guerra. O que a gente faz aqui é igual ao que é feito nos hospitais de campanha em áreas de conflito”, comenta o cirurgião-geral Thyago da Silva Pereira, 36 anos, também plantonista no fim de semana. Para registrar os casos policiais e, claro, garantir a segurança dos profissionais, há dois PMs de plantão no Centro de Trauma.
Em uma grande emergência como essa, a realidade não tem filtro e revela toda a sua crueza. A rotina ali dentro é sempre tensa — e, do lado de fora, o clima não é muito diferente. Chovia fino naquela noite de sexta-feira quando o burburinho de parentes e até famílias inteiras que aguardavam notícias de pacientes foi quebrado por um grito doloroso: “Quero ver meu filho, preciso ver meu filho!”. Era a mãe de um dos jovens suspeitos de pertencer ao crime que chegara morto ao hospital, no início do plantão. “Não cabe ao médico julgar ninguém. Procuro nem saber no que o paciente estava envolvido na hora do atendimento. Isso não importa para a gente”, afirma a cirurgiã-geral Ália Charif Penchel, 30 anos, a primeira residente formada no hospital, outra integrante da tropa de elite médica às sextas.
Lutar incessantemente pela vida do paciente, obviamente, é missão de Ália e de seus colegas. No caso de morte, o que é comum em hospitais aonde muitas pessoas chegam in extremis (locução latina que define tecnicamente a condição de alguém à beira da morte), eles também têm o dever de dar a notícia do óbito à família. “Aprendemos técnicas para abordar os parentes, mas essa é sempre a pior parte. A morte de uma criança baleada tira o meu sono”, admite Pedrosa, o chefe da equipe, a quem coube informar o falecimento do filho à senhora que gritava desesperada, na entrada da unidade. Ainda do lado de fora, já era alta madrugada quando um homem de 26 anos chegou, trazido por uma ambulância, com a cabeça ensanguentada após ter levado uma sucessão de pauladas de um dos irmãos. O caçula, 19 anos, que acompanhava o ferido, estava possesso com o agressor e lamentava-se sem parar, andando em círculos. “Posso até perder o meu pedacinho no céu, mas vou matá-lo, mesmo sendo sangue do meu sangue. Já matei outros três quando estava no crime, não custa nada”, vociferava, sob o olhar atento dos policiais.
Na linha de frente do fogo cruzado urbano, os hospitais são os primeiros a contabilizar os danos da violência. Em 2017, as treze maiores emergências da região metropolitana (cinco estaduais, sete municipais e uma unidade federal municipalizada, o Hospital Geral de Nova Iguaçu) somaram 5 510 atendimentos a baleados. Isso significa quinze baleados atendidos por dia. Nesses prontos-socorros, o tempo é crucial. No Adão Pereira Nunes, que em 2018 completa vinte anos, apenas quarenta passos separam a prancha zero — como é chamada a maca do primeiro atendimento — do Centro de Imagem. Nesse setor, o único da rede pública estadual que reúne dois tomógrafos e um aparelho de ressonância magnética, avalia-se em minutos a extensão dos ferimentos. O centro cirúrgico, com sete salas, fica a poucos metros. Todos os protocolos foram implantados em parceria com o Ryder Trauma Center do Hospital Jackson Health System, em Miami, nos Estados Unidos.
Mesmo com a crise financeira do estado, dá para dizer que a instituição é uma ilha de excelência. “É claro que, pontualmente, pode faltar algo, mas a gente providencia”, diz Manoel Moreira Filho, diretor-geral da casa. Naquele plantão, não havia talas na ortopedia. Também chama atenção a ausência de macas pelos corredores. A explicação é simples: embora o hospital tenha um segundo serviço de pronto-atendimento, separado da área de trauma, somente pacientes em estado grave são internados ali. Os demais são estabilizados e transferidos. Todas as atenções ficam voltadas para o risco iminente de morte. É essa a especialidade dos profissionais que, a cada fim de turno, deixam o serviço exauridos. Às 7 da manhã, com o sol entrando pelas janelas e uma nova equipe chegando para o trabalho, só se tem uma certeza: a labuta interminável prosseguirá no próximo plantão.