Entre todos os legados que a organização dos Jogos de 2016 se comprometeu a deixar para os cariocas, um dos mais vistosos era a despoluição da Baía de Guanabara. De acordo com os planos apresentados ao Comitê Olímpico Internacional há seis anos, as águas turvas e malcheirosas, repletas de lixo de toda espécie, finalmente ficariam livres de boa parte dos milhões de litros de esgoto in natura que são lançados diretamente no cartão-postal mais famoso da cidade. Faltando um ano e meio para a Olimpíada, a possibilidade de a promessa ser cumprida à risca torna-se cada vez mais remota. Das três novas estações que deveriam remover a sujeira das águas dos rios que deságuam na baía, as UTRs, apenas uma está pronta, sem, no entanto, funcionar. As sete estações de tratamento de esgoto instaladas na região há mais de uma década ainda operam com capacidade ociosa pela falta de redes coletoras que as abasteçam. As ecobarreiras, a maior aposta para manter o lixo distante das áreas onde serão disputadas as provas de vela, têm se mostrado incapazes de reter a quantidade brutal de dejetos que chega até ali, da mesma forma que os barcos adquiridos para remover detritos da água ainda estão longe da eficácia planejada. Tal cenário instalou uma operação de guerra na área ambiental do governo estadual. “Estamos fazendo ajustes e redefinindo toda a operação”, diz André Corrêa, secretário do Ambiente, há quarenta dias no cargo. Na semana passada, o administrador de empresas, que já ocupou a pasta no governo de Anthony Garotinho, entre 1999 e 2002, realizou uma série de reuniões emergenciais com especialistas, entre eles os iatistas Torben e Axel Grael, para encontrar soluções para o problema.
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A ambição de chegar à cifra de 80% do esgoto tratado, conforme acertado no dossiê de candidatura apresentado ao COI, já não é considerada realista por quem conhece a situação mais a fundo. Atualmente, cerca de 50% dos dejetos são processados — há dois anos o porcentual era de 30%. Na impossibilidade de limpar a baía completamente, já se busca uma solução emergencial. A prioridade absoluta é que as cinco raias olímpicas destinadas aos barcos estejam livres do lixo flutuante e sem as feias manchas de sujeira que as emporcalham hoje. Já a balneabilidade deve ficar restrita a pontos onde as águas são renovadas com maior frequência pelo ciclo das marés, como a Urca. “A promessa de despoluir a baía a curto prazo foi feita num período de euforia econômica, mas mostrou-se irreal”, diz o economista Sérgio Besserman Vianna, presidente da Câmara Técnica do Desenvolvimento Sustentável do Rio. “Infelizmente o momento agora é outro.” Pelas contas do secretário Corrêa, apenas para instalar a rede de esgotos nos municípios que estão nos arredores do espelho-d’água, seriam necessários 12 bilhões de reais — valor quase dez vezes superior ao que foi investido na baía nos últimos sete anos. Ele planeja recorrer a parcerias público-privadas para ampliar o máximo possível o sistema de coleta e conectá-lo às estações de tratamento. “As PPPs são a alternativa mais viável para avançar nessa área”, justifica.
A crise que se formou em torno da despoluição da Baía de Guanabara é um reflexo da falta de articulação entre as diversas esferas envolvidas no projeto. Sem uma autoridade que centralizasse o processo, as decisões relativas às obras passaram a tramitar em um emaranhado burocrático que engloba os governos estadual e federal, além das prefeituras dos municípios dos arredores. Considerada uma intervenção de alta complexidade, a expansão do sistema de esgotos depende do alinhamento de diversos órgãos. “Um tronco coletor só pode ser implantado, por exemplo, em regiões urbanizadas e com arruamento definido, o que é atribuição das prefeituras”, explica o engenheiro Jorge Briard, presidente da Cedae. A disparidade com que a questão é conduzida fica evidente quando se comparam cidades vizinhas. Enquanto Niterói recolhe corretamente 90% dos rejeitos de seus 487 000 moradores, em São Gonçalo, com o dobro da população, o índice não chega a 10%. Situação parecida é registrada em Duque de Caxias. “Os dois municípios estão entre os vinte piores do Brasil em saneamento. Com um cenário desses, não há como despoluir o fundo da baía, onde ocorrem os despejos”, diz Dora Negreiros, presidente do Instituto Baía de Guanabara.
A centralização de decisões em um único órgão foi um fator crucial para que projetos de despoluição de grande escala funcionassem. Regiões que empreenderam faxinas de proporção semelhante, como as realizadas nas baías de Tóquio e Hong Kong e no Rio Tâmisa, em Londres, apostaram nesse formato. A Baía de Chesapeake, nos Estados Unidos, é outro exemplo bem-sucedido de integração. Com 166 000 quilômetros quadrados, tem suas margens compartilhadas por sete estados da costa leste do país. Em um esforço que remonta à década de 70, os americanos conseguiram a hercúlea tarefa de limpar os 150 rios que desembocam ali, numa iniciativa acompanhada por uma fundação que supervisiona a alocação de recursos. No caso da Guanabara, desde 1995 tenta-se limpar as águas — sem sucesso. É dessa época o programa conhecido pela sigla PDGB, que consumiu 6 bilhões de reais durante os onze anos em que esteve ativo e que não conseguiu concluir a tarefa. “Devido à falta de continuidade, os benefícios das iniciativas tomadas até agora foram apenas pontuais”, explica David Zee, professor de oceanografia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “Isso acarreta projetos cada vez mais caros e resultados que não justificam o tamanho do investimento feito.”
Com o cronômetro acelerado, o governo faz ajustes no plano original e busca aumentar a eficácia dos recursos disponíveis. É o caso das ecobarreiras, que inicialmente deveriam ser formadas por quinze diques e atualmente contam com seis em operação. Segundo o secretário, técnicos estão reavaliando e redimensionando o sistema para torná-lo mais eficaz, pois são comuns os rompimentos, que fazem com que os detritos escapem. O projeto de dez ecobarcos, que custa 300 000 reais por mês aos cofres do estado, também será revisto devido à baixa eficiência. Entre as medidas emergenciais estudadas para melhorar a atuação dessas embarcações está o levantamento computadorizado das correntes marítimas no planejamento da limpeza. Iniciado em dezembro, tal procedimento utiliza um software para combinar informações como salinidade, comportamento das marés e dados meteorológicos. Com isso, pretende-se projetar com antecedência de até três dias o trajeto que o lixo flutuante percorrerá e programar a atuação dos barcos-garis.
Em outra frente, tenta-se formar parcerias para pôr em funcionamento a UTR de Irajá. Sozinha, a unidade tem capacidade de eliminar 12% da poluição jogada no mar com o uso de aditivos químicos, adicionados à água junto à foz do rio. Construída pela Petrobras, ela teve sua inauguração adiada cinco vezes. Isso porque a própria secretaria concluiu que não possui a expertise necessária para fazê-la funcionar. “Vamos tentar uma associação com a prefeitura do Rio, que opera uma estrutura semelhante”, diz o secretário Correa. As outras quatro UTRs, cujo começo das obras estava previsto para o ano passado, ainda não foram iniciadas e estão sendo reavaliadas. No palco principal da festa na baía, a Marina da Glória, a Cedae constrói uma estrutura subterrânea de 1 quilômetro de extensão chamada galeria de cintura, que coletará o esgoto que hoje chega às águas e o lançará na rede ligada ao emissário submarino de Ipanema. Com inauguração prevista para outubro, ela será entregue dois meses depois do próximo evento-teste de vela, marcado para agosto. Até o fim do ano, os despejos que sujam a Enseada de Botafogo também devem ter o mesmo destino. Em meio ao sprint para evitar um vexame internacional, cada segundo é precioso daqui para a frente.