Localizada nos confins de Santa Cruz, bairro no extremo oeste do Rio, a fazenda Lama Preta teve dias agitados nas últimas semanas. A propriedade, com sua paisagem árida, foi tomada por um batalhão de cerca de 400 pessoas, entre atores, figurantes e técnicos de figurino, cenografia e efeitos especiais. Ali, eles viveram uma epopeia para encenar dois dos episódios mais marcantes do Êxodo, um dos quatro livros que narram a história do profeta Moisés no Antigo Testamento. O objetivo era recriar a sétima praga do Egito (quando Deus pune os egípcios com uma chuva de granizo e uma saraivada de fogo) e a travessia do Mar Vermelho para a novela bíblica Os Dez Mandamentos, da TV Record, pertencente à Igreja Universal do Reino de Deus. Na empreitada, foram utilizados nove câmeras de altíssima resolução e três drones — um esforço que contou com a coordenação do diretor e produtor americano Sam Nicholson, um craque em efeitos visuais que já trabalhou em séries de TV como The Walking Dead, Heroes, Grey’s Anatomy e 24 Horas. Concluídos os trabalhos e acrescentadas cenas filmadas em outras quatro locações, o material gravado foi levado para Los Angeles, nos Estados Unidos. Na cidade californiana, trinta técnicos da produtora Stargate Studios agora se ocupam das imagens. É a etapa final de um complexo e caro processo. Apenas a pós-produção de cada uma das duas sequências registradas em Santa Cruz custará pelo menos 9 milhões de dólares. “Nunca foi feito nada tão grandioso na televisão brasileira”, orgulha-se o produtor de efeitos visuais Leo Santa Rita, funcionário da Stargate, com passagens anteriores pela TV Globo e pela própria Record.
O público vai poder conferir se o audacioso investimento valeu a pena a partir de meados de agosto, quando os capítulos irão ao ar. A intenção da cúpula da rede é que as duas cenas apocalípticas tenham um efeito semelhante nos índices de audiência da concorrência. Com um enredo melodramático baseado na história do profeta Moisés (Guilherme Winter), em seus embates com o faraó Ramsés (Sergio Marone) e nos rolos amorosos com a hebreia Zípora e a princesa egípcia Nefertari (Giselle Itié e Camila Rodrigues, respectivamente), a produção incomoda a Globo desde março, quando estreou. A audiência de Os Dez Mandamentos, que vai ao ar às 20h30 de segunda a sexta, vem crescendo mês a mês (veja o quadro na pág. 30) e catapultou a emissora ao posto de vice-líder absoluta do horário. No último dia 15, no capítulo que mostrou a coroação de Ramsés como faraó, a novela bateu seu recorde, com média de 17 pontos no Ibope no Rio e em São Paulo, o equivalente a cerca de 5 milhões de pessoas sintonizadas no canal em ambas as cidades.
No mesmo dia, ficou a apenas 8 pontos do Jornal Nacional e a 6 de Babilônia, atração que, em seus piores momentos, em abril, chegou a registrar apenas 20 pontos na capital paulista. Procurada, a TV Globo declarou por meio de sua assessoria de imprensa que continua líder absoluta no horário das 20h30 e que o folhetim da Record não concorre com o Jornal Nacional nem com suas novelas, mas sim com as reprises de temática infantil do SBT. O sucesso da produção bíblica é tão surpreendente que até despertou a curiosidade de jornais do exterior, a exemplo dos ingleses The Guardian e Daily Mail e do americano The New York Times. “Um dos nossos maiores trunfos foi apostar numa temática diferente e lançar a primeira novela bíblica do país”, comemora o diretor-geral da obra, Alexandre Avancini.
Em um feito raro, a novela já é exibida em Angola e Moçambique, na África, e está sendo negociada com o canal Mundo Fox, dos Estados Unidos. O êxito de Os Dez Mandamentos é uma bênção para a Record. Depois de investir uma dinheirama — cerca de meio bilhão de reais — no RecNov, uma vasta central de produções em Vargem Grande, a empresa enfrentava uma fase de vacas magras antes do fenômeno egípcio. Na abertura do complexo, em 2009, a emissora chegou a ter três atrações simultâneas na área de dramaturgia. Nos últimos anos, entretanto, a rede seguia uma melancólica curva descendente na linha de novelas e séries. Não é à toa que a alta cúpula da Igreja Universal aposta todas as fichas na novela. Embora em certos momentos a produção flerte com a cafonice e o nonsense, é fato que existe um investimento inédito por parte do canal. Os 150 capítulos do folhetim consumirão 105 milhões de reais, ou seja, uma média de 700 000 reais cada um. É o mesmo patamar de recursos aplicados nos programas de ponta da arqui-inimiga baseada no Projac, em Jacarepaguá.
Os cenários que abrigam os personagens hebreus e egípcios impressionam. Só na cidade cenográfica, montada em Guaratiba, foram erguidas 100 construções. Duas delas, o palácio do faraó e o templo, chamam atenção pela opulência, com fachada de 15 metros de altura. “Nós nos inspiramos em várias produções para fazer os cenários, do antigo filme Os Dez Mandamentos, dos anos 50, com o ator Charlton Heston, a Gladiador, passando por Guerra dos Tronos”, diz o diretor de cenografia, Helton Minosso.Para vestir a multidão que circula pelos sets de gravação, a emissora também caprichou. Foram criados 3 000 figurinos, tudo com acabamento final feito a mão. A maioria das peças foi confeccionada com linho ou tecidos produzidos em teares artesanais. Mas nada se compara a uma das indumentárias de Ramsés, com coroa e armadura de couro de peixe e pedrarias. Só ela custou 8 000 reais. Para dar veracidade à opulência egípcia, todas as joias usadas em cena são de pedras semipreciosas. “Evitamos o plástico, porque não queríamos que ficassem com cara de adereço de escola de samba”, diz a figurinista Carolina Louceiro
A caracterização dos personagens também envolve um complexo ritual de preparação. Tatuagens, marcas de vacina e sinais que comprometam a veracidade histórica são cuidadosamente cobertos por base e cosméticos. Alguns atores passam duas horas em frente ao espelho na sala de maquiagem. E, dado o apreço dos antigos egípcios pelas cabeças e corpos lisos, a ordem é que os homens que interpretam os súditos dos faraós mantenham a depilação em dia e a careca sempre lustrosa. Entre eles está o protagonista Sergio Marone, 34 anos. “Quando vi o tamanho da produção, imaginei que teria impacto, mas não que o sucesso fosse tão grande”, diz o ator. “Há uma semana fui cercado por uma multidão de crianças num aeroporto. Eu me senti o próprio Mickey.”Com seu enredo bíblico, diálogos empolados e discurso moralista, Os Dez Mandamentos segue no caminho oposto ao das tramas com polêmicas e temas contemporâneos exibidas pela Globo. Há quem credite o sucesso da Record a uma onda conservadora entre o público de TV aberta, que estaria incomodado com as ousadias das novelas da maior emissora brasileira, como as vistas em Babilônia.
Para a autora de Os Dez Mandamentos, Vívian de Oliveira, a explicação é mais simples. “Com uma narração atemporal, a produção tem todos os ingredientes de um folhetim clássico: drama, triângulo amoroso, disputa pelo poder, inveja e doses de comédia”, diz. A exemplo dos delírios de Glória Perez em suas criações para a Globo baseadas no Marrocos, na Índia e, mais recentemente, na Turquia, a imaginação de Vívian parece não ter limites. Numa cena gravada nesta semana, causou estranheza o fato de a hebreia Bina (Kátia Moares) mandar o marido Corá (Vitor Hugo) lavar uma pilha de louças na cozinha de seu casebre de 3 000 anos atrás. “Tenho muita liberdade, mas não sou louca de mexer no enredo bíblico”, comenta a autora. Para o especialista em novelas Claudino Mayer, doutor em teledramaturgia da Universidade de São Paulo (USP), a trama bíblica mexe com o inconsciente coletivo, perpassa diversas religiões e desperta a curiosidade de públicos distintos. “Fazia tempo que não se via uma produção mobilizar famílias inteiras, como esta está fazendo”, observa. O ex-todo-poderoso da Globo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, tem uma opinião mais contundente sobre o embate. “É óbvio: uma novela tem história, enquanto a outra (Babilônia) não”, resume.
A opção por temas bíblicos da Record vai ao encontro de um filão ressuscitado recentemente por Hollywood. O revival é considerado uma aposta certeira. Já se conhece o final da história, mas sabe-se que a nova roupagem garante o deleite das plateias de todas as faixas etárias. Só nos últimos dois anos foram lançadas três superproduções religiosas. Impulsionados por efeitos visuais cada vez mais pirotécnicos, os filmes Noé, O Filho de Deus e Êxodo ganharam ares de cinema-catástrofe. No último deles, do diretor Ridley Scott, em que Moisés é vivido por Christian Bale, os périplos do profeta são justificados mais por fenômenos da natureza do que pelo sobrenatural. No longa O Filho de Deus, Jesus chega ao ponto de ser mostrado como um herói com superpoderes. É consenso que as produções bíblicas de agora não têm a reverência à religião ou a preocupação de serem respeitosas como no passado. O folhetim produzido no Rio, nesse sentido, se alinha com a concepção mais tradicional, como seria de esperar em uma emissora comandada por uma igreja evangélica. “Na novela, temos a preocupação de explicitar a intervenção divina, e isso vai aparecer de forma marcante nas sequências que estamos finalizando em Los Angeles”, destaca o produtor Leo Santa Rita.Os Dez Mandamentos tem origem em um projeto da Record que se iniciou discreto, há cinco anos.
Em 2010, a emissora decidiu investir em sua primeira produção do gênero com a minissérie A História de Ester, com dez capítulos. Seguiram-se Sansão e Dalila (2011), Rei David (2012) e José do Egito (2013). Originalmente, a saga de Moisés seria também uma produção compacta, mas a direção da emissora resolveu arriscar um formato mais ambicioso em um horário que não concorresse diretamente com o principal produto de dramaturgia da maior emissora do país. Mesmo tendo como rival um dos programas de maior audiência da Globo, o Jornal Nacional, o folhetim conseguiu atrair a atenção do público. E, nos últimos quatro meses, a turma do Antigo Egito chegou a liderar o horário, ainda que por alguns minutos, em cidades como Belém, Recife e Goiânia. Animados, os pastores da Record decidiram que a estratégia seguirá com uma nova produção, uma odisseia inspirada na trajetória de Josué, que seria uma continuação de Os Dez Mandamentos. Se repetirá a trajetória até agora bem-sucedida da antecessora, só Deus sabe.