A data oficial cai em abril, mas a cada dia 23 uma missa dedicada ao santo guerreiro é celebrada na Igreja de São Gonçalo Garcia e São Jorge, no Centro. Em janeiro, numa manhã de sábado, o espaço modesto foi todo ocupado, e muita gente ficou do lado de fora. Logo após as últimas palavras do padre Wagner Toledo, ouviu-se uma surpreendente batucada. O vigário e seu rebanho receberam com alegria a visita da bateria da escola de samba Estácio de Sá. De volta ao Grupo Especial após nove anos, a agremiação vai defender na Sapucaí o enredo Salve Jorge! O Guerreiro na Fé — daí a confraternização. Padre Toledo é só empolgação. “Esse enredo presta um grande serviço à Igreja. A letra do samba é uma oração”, diz, antes de louvar o alcance da festa. “Se aqui no templo eu não consigo abrigar 1 000 fiéis, o desfile será acompanhado por quase 100 000 espectadores (a capacidade do Sambódromo é de 72 000 pessoas), além de fotografado, transmitido pela TV e pela internet, que está em todo canto do mundo”, conta. Com cenas como a do último dia 23, o padre e a Estácio estão escrevendo um capítulo raro na história nem sempre pacífica das relações entre o sagrado e o profano.
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Desde seus primórdios, lá para as lonjuras do século VIII, a Igreja Católica já buscava enquadrar os excessos festivos do povo, definindo uma data restrita para a folia, antes do período de penitência da quaresma. O Carnaval ganhou forma, portanto, ligado à religião, mas a discussão sobre os limites entre um e outro sempre rendeu muita briga. Na mais notória, em tempos recentes, o quiproquó deu-se em 1989, quando a Beija-Flor de Joãosinho Trinta foi proibida de exibir uma de suas alegorias: em ato de desobediência, a enorme estátua do Cristo Redentor desfilou coberta por sacos de lixo (veja o quadro). A serviço da Estácio neste ano, o experiente carnavalesco Chico Spinosa também já passou maus bocados. Em 2000, na Unidos da Tijuca, teve de explicar à polícia o enredo Terra dos Papagaios… Navegar Foi Preciso. “Fui muito torturado pela Igreja”, lembra, com aquele exagero típico de seu ofício. “Naquele ano, coloquei a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes no carro que representava a caravela de Cabral, e me prenderam. Chegaram a me levar para a delegacia da Central do Brasil. Fiquei duas horas lá dentro, e a santa passou um dia inteiro.” Hoje, os tempos são outros. “Agora, com São Jorge, fizemos as pazes”, conta Spinosa.
A aproximação foi cercada de cuidados, não por acaso — a pioneira Estácio, ainda com o nome de Unidos de São Carlos, foi a primeira vítima da linha dura católica, quando, em 1975, apresentou enredo sobre a festa religiosa do Círio de Nazaré. Em reunião com o arcebispo do Rio, dom Orani Tempesta, uma sinopse do enredo para 2016 foi mostrada. “A Estácio de Sá pediu a autorização alegando que não haveria confronto com a Igreja, nada depreciativo, e o intuito não era mexer com São Jorge na questão do sincretismo”, explica o padre Wagner Toledo. Abriram-se os caminhos, portanto. Mestre em história social pela UFRJ e respeitado estudioso das coisas do samba e do Carnaval, Luiz Antonio Simas atribui a postura mais tolerante das autoridades eclesiásticas ao processo de perda de fiéis, sobretudo com o avanço das denominações neopentecostais. Criado nos terreiros de candomblé, o professor ainda aponta, com bom humor, a presença do sincretismo, que tanto incomoda o clero, nos versos do samba-enredo aprovado pela arquidiocese. “A escola fez uma coisa muito interessante. Cita axé, que é a energia do candomblé iorubá, feijoada, a comida de Ogum, o orixá guerreiro que, no sincretismo religioso, é associado a São Jorge, e o batuqueiro, que vem a ser Ogan. Foi discreta, mas no ponto certo”, ensina.