Ameaça no ar: balões ganham impulso com apoio de tráfico e milícia
Crime ambiental desde 1988, prática ligada a festas juninas esbarra em outros crimes, como estocagem irregular de explosivos e apologia a criminosos
São muitas as versões da música Cai, Cai, Balão, que há décadas embalam o período das festas juninas. Uma delas, de 1933, foi escrita por Assis Valente, compositor de Brasil Pandeiro, trazendo o encanto por trás de um dos mais conhecidos costumes da época: Numa noite de fogueira enviei a São João / O meu sonho de criança num formato de balão. Por trás dessa tradição, criada para avisar que as comemorações estavam começando, no entanto, há sérios riscos. Tanto é que em 1988 a prática se tornou crime ambiental, por ameaçar o espaço aéreo, provocar grandes incêndios florestais e urbanos, e gerar perigosos transtornos quando a queda ocorre em vias movimentadas, assim como nos trilhos de trens e metrô de superfície. Mesmo assim, ela está longe de ter fim. Insuflada pelas redes sociais, onde os grupos de baloeiros divulgam informações, a prática também vem se disseminando em áreas de tráfico e milícias do Rio, e alçando voos que esbarram em outros crimes, como estocagem irregular de material explosivo e apologia a criminosos. “É tudo contra a lei. Nosso desafio é conscientizar as pessoas de que não tem nada de brincadeira pueril nisso”, diz o delegado titular da Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA), Wellington Vieira.
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Em 2022, o Corpo de Bombeiros do Rio registrou 38 balões que caíram em áreas urbanas provocando grandes acidentes ao atingir residências, fiação elétrica e postos de gasolina. Até maio de 2023, antes mesmo de as festas juninas começarem, o número de casos já somava 21. Um deles aconteceu no Aeroporto Santos Dumont, onde por pouco não ocorreu uma tragédia no último dia 14 de maio. O artefato pousou ao lado de um avião que estava sendo abastecido na pista e entrou em chamas, interrompendo todos os pousos e decolagens. A ameaça é constante: nos cinco primeiros meses do ano, 82 deles já foram avistados no entorno do terminal. Em dez ocasiões, a brigada de incêndio da Infraero precisou ser acionada. “A gente atua em consequência. Só temos a real visão dos riscos de cada balão no momento em que somos chamados”, observa o porta-voz dos Bombeiros, major Fabio Contreiras. Ele lembra que uma aeronave que pousa no Santos Dumont carrega 30 000 litros de querosene de aviação. Sem contar a quantidade nos tanques dos caminhões que as abastecem. “Se fosse no Galeão seriam 300 000 litros, que é o necessário para voos que cruzam o Atlântico”, destaca o major.
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No terminal internacional do Rio, o monitoramento também é constante. Foram registradas 349 ocorrências nos últimos cinco anos, treze delas no primeiro quadrimestre de 2023, segundo a concessionária RIOGaleão. Esse fluxo ganha impulso principalmente nesta época do ano, não só pelas festas, como por causa dos ventos mais secos, que fazem com que os balões alcancem maiores altitudes e também fiquem no ar mais tempo. O congestionamento no espaço aéreo carioca levou o Disque Denúncia a lançar em abril mais uma edição da campanha Disque Balão, cujo objetivo é atuar na prevenção à confecção, comercialização, soltura e realização de festivais de balões. “O ideal é que a gente consiga chegar antes que eles sejam soltos. Depois, ninguém tem mais controle. Viram lança-chamas”, alerta Renato Almeida, coordenador do serviço de denúncias. Desde 2017, já foram cadastradas quase 1 000 informações envolvendo os artefatos, fornecidas anonimamente por telefone — são duas linhas, que funcionam também como WhatsApp: 2253-1177 (capital) e 0300 253 1177 (interior).
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As pistas levaram à apreensão antecipada de cerca de 2 000 balões, fora enormes quantidades de fogos, morteiros e outros itens usados na confecção. No estado, o maior número de denúncias cadastradas parte de Duque de Caxias e São Gonçalo, além da cidade do Rio. Taquara, Campo Grande e Ilha de Guaratiba lideram o ranking de bairros com mais chamadas. Há cerca de um mês, em uma das ações policiais desencadeadas pelo serviço, agentes da DPMA apreenderam até um barco usado por turmas de baloeiros em operações de resgate. Isso porque, depois de soltos, esses gigantes do ar são caçados pela cidade. Quem consegue capturá-los pode soltá-los de novo ou revendê-los — um balão pode chegar a custar 20 000 reais e levar até um ano para ficar pronto. Não por acaso, os chamados resgatistas são conhecidos pela violência de suas ações, que podem envolver homens armados e invasão de propriedades. “Isso é cultura? Para mim este argumento é uma falácia”, defende Wellington Vieira.
Diante do aumento dos casos e acidentes, a DPMA instituiu um grupo para monitorar as redes sociais e identificar as pessoas envolvidas na prática. “Em março começamos a investigá-las, como suspeitas, e a abrir inquéritos. Não sabemos quantas são as turmas, mas estamos catalogando”, diz ele, convicto de que a internet ajudou a atrair mais gente. Naquele território livre, muitas são as postagens de festivais, revoadas e de resgate. O trabalho dos agentes abrange não apenas enquadrar os envolvidos na confecção e soltura dos artefatos, sujeitos à prisão de um a três anos de reclusão e multa. A ideia é comprovar outros crimes também cometidos pelos grupos, como associação criminosa, corrupção de menores e apologia, que podem elevar as penas. “Na Vila Cruzeiro, subiram um balão com a cara de um urso, que é o apelido de um traficante local. A população às vezes vê de baixo e não sabe o que está aplaudindo”, conta o delegado, acrescentando que a participação dos traficantes e milicianos muitas vezes envolve o financiamento da atividade.
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A tradição de soltar balões chegou ao Brasil com os colonizadores portugueses e foi sendo passada de geração a geração, principalmente nas periferias, como conta a cientista social paulistana Erika Santos, mestre pela Universidade Federal de São Paulo com a dissertação Festa no Céu, Conflito na Terra. “Apesar das controvérsias, eles fazem parte da cultura popular brasileira, envolvem toda uma arte. No México e na Colômbia, são até peças de museu”, afirma a pesquisadora, que cresceu no ambiente que acabou se tornando seu objeto de estudo. Segundo Erika, o Rio é pioneiro na questão do gigantismo dos balões, com exemplares que chegam a 100 metros de altura — o equivalente a um prédio de mais de 33 andares. “Foi no estado que eles começaram a sair do contexto junino e ganharam outra dimensão, com desenhos e enredos, homenagens a jogadores, times, filmes, e passaram a ser soltos durante todo o ano”, diz. Em São Paulo, foco maior do estudo, ela não detectou ligações das turmas de baloeiros com o tráfico. Por aqui, pelo visto, pairam mais riscos que os habituais com essa perigosa tradição da época.