A versatilidade dos músicos ambulantes foi pintada por Jean-Baptiste Debret na cidade do Rio de Janeiro na década de 1820. As famosas orquestras de rua retratadas pelo artista francês foram o primeiro registro de música urbana na cidade carioca, as quais uniam negros escravizados e libertos e variavam em sons e ritmos. Eram os chamados músicos barbeiros, mestres de muitos ofícios, que poderiam ser curandeiros, dentistas e cirurgiões, tudo em uma única pessoa. Conhecidos também como charangas – bandas de música popular que tocavam em marcha pela cidade -, os grupos atuaram do século 18 até depois da chegada da Família Real ao Brasil com os músicos portugueses, em 1808.
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Os artistas ambulantes eram responsáveis por divertir o público ao redor da cidade e o faziam com maestria ao tocar de maneira improvisada os instrumentos doados que recebiam, em sua maioria usados e já desgastados. O repertório deles estava repleto de gêneros musicais europeus e africanos e conquistava as pessoas com muita diversão. Debret acompanhou de perto uma das muitas origens do que hoje podemos chamar de música popular brasileira e guardou o momento em aquarelas, compiladas no livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, 1816-1831, que foi publicado entre 1834 e 1839 na Europa.
Músicos barbeiros e outros ofícios
Nem todos os músicos ambulantes eram barbeiros, mas é sabido que nenhum deles exercia apenas o trabalho de músico, fossem escravizados ou libertos. A aptidão musical era apenas mais uma das formas dos negros fazerem dinheiro no Rio de Janeiro oitocentista e, por isso, era comum que prestassem diferentes tipos de serviços. No letreiro da obra debretiana Loja de Barbeiro, de 1821, é possível ver algumas das funções complementares oferecidas por barbeiros: cabeleireiro, sangrador, dentista e deitão-de-bixas – que se refere ao manuseio de sanguessugas para tratamentos médicos.
A música também era uma das práticas que os escravizados frequentemente dominavam “de ouvido”. A qualidade musical das charangas, entretanto, dividia opiniões: havia quem amasse e quem detestasse. Historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Martha Abreu destaca que Debret era um dos que achava que os barbeiros tocavam muito mal. Porém, isso não os impedia de fazer sucesso. “Na cidade, havia empresários que compravam escravos que eram músicos e os alugavam. Tocavam de tudo, aprendiam música sacra. Não havia missa ou procissão sem os músicos barbeiros. Eram contratados já profissionais mesmo sendo escravizados”, diz Martha.
A vestimenta era o que os caracterizava como barbeiros ambulantes. Debret pintou fielmente as charangas com músicos de pés descalços, roupas de algodão grosseiro e chapéus de palha, como se vestiam frequentemente. O chapéu presente no retrato Marimba, de 1826, remetia ao uniforme da fundação do Exército Brasileiro no Brasil Império em 1822 e lembrava trajes europeus. Vestiam-se da forma mais elegante possível a fim de demonstrar esteticamente a perspicácia que possuíam. Mesmo assim, Debret os descreveu como vagabundos na aparência, sem que se deixasse esquecer que se tratavam de uma “raça inferior e passível de comercialização”.
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Nos ritmos da senzala
Segundo os relatos de Debret encontrados em Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, 1816-1831, os músicos barbeiros eram capazes de executar no violão ou na clarineta valsas e contradanças francesas. No geral, interpretavam ritmos ainda mais variados, como dobrados, um tipo de gênero derivado de marchas militares; fandangos, de ritmo dançante; lundus; polcas e quadrilhas. Tamanha versatilidade era o que tornava o grupo de barbeiros responsável pela música em eventos de todas as classes, fossem festividades populares, blocos de Carnaval ou procissões da igreja católica, como a Festa do Divino Espírito Santo.
Apesar do pintor francês se referir diretamente ao uso de instrumentos de origem europeia pelos ambulantes em seus escritos da época, os quadros debretianos do início do século 19 mostram também o uso da percussão em marchas musicais. Os charangas dominavam instrumentos como a kalimba e o reco-reco, ambos de origem africana, pois eram produzidos facilmente e a baixo custo.
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Os barbeiros ainda tocavam viola, cavaquinho, trompa, flauta, piano, bombardino, sanfona, pandeiro, tamboril, rabeca e muitos outros. De acordo com Rafael Galante, historiador e etnomusicólogo, não havia no Brasil instrumento que não fosse tocado por escravizados.
“Você não vai encontrar qualquer instrumento musical, seja da tradição musical europeia, seja da tradição musical africana, que não seja tocado por pessoas escravizadas no Brasil do século 19. A gente vai ter músicos escravizados em todos os lugares da sociedade brasileira. Todas as situações que você puder imaginar. Tocando dentro de uma igreja ou tocando para o Dom Pedro II dentro de um palácio”, afirma Galante.
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Diferentemente das orquestras de fazenda, que contavam com aulas de professores de música europeia, os músicos barbeiros aproveitavam os conhecimentos instrumentais adquiridos antes de serem trazidos à força ao Brasil. Mesmo os escravizados que não dominavam completamente a prática musical aprendiam de forma autodidata a fim de receber algum dinheiro através de apresentações pela cidade quando tinham tempo livre. Em todos os casos, Rafael descreve o lugar do músico como o lugar da subalternidade no Rio de Janeiro oitocentista.
Liberdade e escravidão
Existiam muitas culturas musicais africanas e afro-brasileiras no Rio de Janeiro do século 19 ao mesmo tempo, é o que destaca Rafael. O historiador lembra que o Brasil foi o maior escravista da humanidade e, até o final do tráfico negreiro na década de 1850, continuou a ser reafricanizado com a constante chegada de novos escravizados e outras culturas musicais, que reforçavam as práticas musicais já existentes no país. É a partir disso que Galante declara que as bandas de barbeiros conjugam o entrelugar da escravidão e da liberdade, pois uma orquestra de trinta músicos poderia ser composta por dez homens livres e vinte escravizados, eventualmente de gerações distintas.
“Você pode ter uma cultura musical de alguém que chegou da África ontem e de um afro-brasileiro de quinta geração. A cultura dos dois é muito distante entre si, então não é simplesmente a comunidade negra e a comunidade branca, existem muitas comunidades nessa mesma sociedade. É muito diferente a cultura musical de um sujeito negro como Machado de Assis, que vem de uma família livre e tem toda uma experiência da liberdade, e do seu vizinho ou de alguém que morava na mesma chácara que ele, que era escravizado”, explica o etnomusicólogo.
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Diante de um país racista e escravocrata, Martha comenta que a música parecia ser o único espaço que aceitava a presença da população negra, mesmo que de forma inferiorizada. O trabalhador, quase sempre negro, independentemente da atividade que prestava, era considerado um subalterno social, e usava a música como caminho de humanização. Nela, encontrava espaço para cantar, tocar e escrever canções pela atração que a música negra proporcionava. Com um repertório diverso, os barbeiros ambulantes representavam uma das primeiras manifestações de música popular brasileira e entretenimento público, e davam origem aos mais variados gêneros musicais afro-brasileiros.
“Depois da missa, eles iam para a roda de samba. Assim fica fácil entender a emergência do choro. O choro é um gênero com instrumentos de sopro, tambor, pandeiro, mas tem muito improviso. Os gêneros e os instrumentos se misturam. Por isso se diz que o choro é muito afro-brasileiro”, esclarece a professora.
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Os músicos barbeiros, que ganharam destaque principal em procissões religiosas e orquestras de rua enquanto escravizados, conseguiam comprar a liberdade através da música e outros ofícios. Um exemplo é a figura de Antônio José Dutra, que se alforriou jovem e morreu líder de banda, dono de barbearia e detentor de escravos. Assim como ele, os demais barbeiros que ganhavam espaço no mercado musical eram responsáveis por levar os ritmos da senzala para além do tempo presente, em um vislumbre do futuro. Muitos se tornaram músicos famosos, ou os filhos deles, e continuaram a conquistar o público com o choro, o samba, as modinhas de Carnaval e o que mais houvesse de música para tocar.
*Giselia Amanyara, estudante de Jornalismo da PUC-Rio, com orientação de professores da universidade e revisão final de Veja Rio.
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Este conteúdo integra o conjunto transmídia que reúne produções em texto, áudio e vídeo sobre memória. Foram feitas por estudantes de Comunicação da PUC-Rio, com a orientação dos professores Alexandre Carauta, Creso Soares Jr., Chico Otavio, Felipe Gomberg, Luís Nachbin e Mauro Silveira.