Assinado por Lô Borges e por Milton Nascimento, que se define como o mais mineiro dentre todos os cariocas, o disco Clube da Esquina se mostrou a incomum junção das tortuosas montanhas de Minas Gerais com o sedutor mar do Rio de Janeiro. Em março de 2022, a obra completou meio século de vida, inclusive sendo eleita em primeiro lugar na lista de maiores álbuns da música brasileira do podcast Discoteca Básica. Sobretudo resultado do encontro de artistas majoritariamente mineiros, carrega a força coletiva da amizade deles.
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Para criá-lo, Lô, Milton e Beto Guedes se isolaram numa casa alugada em Piratininga, bairro localizado na Região Oceânica de Niterói. O local recebia frequentes visitas de outros companheiros da turma como Ronaldo Bastos, Márcio Borges e Fernando Brant. Aquele cenário paradisíaco era por eles transformado em tempestade criativa.
Segundo a pesquisadora Chris Fuscaldo, autora de Discobiografia Mutante: Álbuns Que Revolucionaram a Música Brasileira, “o Clube da Esquina fez algo que ninguém havia feito antes: misturou jazz, MPB, progressivo, rock, Bossa Nova”. Com tal mistura de gêneros musicais, refundou o espaço-tempo da música brasileira: “[o Clube] marcou a chegada da renovação musical dos anos 70 e Minas Gerais virou referência para outros artistas”.
Chris descreve o caráter bucólico do local em que os músicos moraram no início da década de 70, por meio dos relatos do seu pai: “Toda Região Oceânica era mato e mar. Havia as praias, como Piratininga e Camboinhas, lindas com suas restingas, poucas casas e raríssimos pontos comerciais. Na Estrada de Itaipu, havia (ainda há) um motel onde alguns namorados se escondiam, mas a própria areia das praias era cenário de romances e de noitadas regadas a violão”.
O fã Philipe Baldissara, 22 anos, avalia que as canções do Clube, embora concebidas no interior de Niterói, são “essencialmente mineiras”: “a música ali tem sotaque, isso é o mais interessante de tudo. Talvez os mineiros da banda se inspiraram ao ver o mar”.
Philipe conta ser o álbum um dos responsáveis por introduzi-lo à MPB na adolescência, bem como um impulso para conhecer outros artistas brasileiros: “foi o disco que fez eu me apaixonar pelo gênero. Percebi a existência de uma beleza imensa a ser descoberta”.
Cinquentenário, o álbum ainda apaixona jovens como Philipe: “é pra se escutar com cerimônia, só o escuto como um ritual. Destino todo um momento pra colocar ele na íntegra, me atentando a tudo. É um álbum pra ir se percebendo elementos novos a cada escuta. As surpresas dele me encantam”.
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Nada será como antes: Os frutos do Clube
Sobre a força do álbum sugerida por Philippe, o historiador da música e professor Paulo César de Araújo, autor de livros sobre MPB, aponta o Clube também como inovador no processo de produção musical: “Esse disco é um dos primeiros em que o artista domina todas as fases da produção – a capa, o arranjo, a gravação e a sonoridade. A gravadora queria, por exemplo, fazer um álbum único, mas Milton quis fazer um álbum duplo – algo que já não era tão comum. Foi o momento em que o músico brasileiro conquistou o estúdio”.
Próximo dos criadores do Clube, principalmente de Beto Guedes, o músico Marcos Sabino reforça a influência da música popular inglesa nas décadas de 60/70 em Minas e em Niterói. Dois lugares que ainda preservam o rock britânico como pilares de suas formações culturais. Relembra a presença da bossa-nova em Niterói: “Muito se fala de Copacabana, e com razão, na história da bossa, mas em Niterói havia um dos lugares mais importantes do movimento. Era o Petit-Paris”.
Marcos resgata o impacto do do Clube, lançado durante a ditadura militar: “foi um baque, porque mostrava ser possível existir tal sonoridade no Brasil. Melodias que voltavam a falar de amor, da vida de uma forma mais lúdica, nem sempre tão política”. Naquele momento, Caetano Veloso e Gilberto Gil tinham recém-voltado ao país, depois de anos exilados em Londres por conta das repressões sofridas após AI-5.
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Na música contemporânea brasileira, o sotaque do Clube ainda é visto e ouvido. Como aponta Marcos Sabino, “o legado (do álbum) perpassa gerações”. No primeiro disco lançado, Heresia (2013), o rapper mineiro Djonga resgata e reinventa a capa do álbum de Lô e de Milton.
Já no álbum de estreia da banda Dônica, “Continuidade dos Parques”, Milton Nascimento participa da faixa “Pintor”, em dueto com Zé Ibarra. A parceria deu tão certo que, anos mais tarde, surgiu um convite para que Ibarra integrasse a turnê comemorativa do Clube da Esquina, iniciada em 2019. Sua figura no palco, tocando violão e dividindo vocais com Milton, representava uma profunda junção de gerações. Um espelhamento da dinâmica que Milton Nascimento tinha com Lô Borges décadas atrás.
A esquina entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis, em Santa Tereza, bairro de Minas Gerais, foi o local que batizou o Clube. Era lá que jovens das redondezas se encontravam, perto da casa da família Borges, para cantar e tocar música. Celebrando, assim, a amizade e confraternizando por muitas noites adentro.
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Se o mesmo espírito coletivo foi levado para a casa de praia de Piratininga e influenciou uma série de músicos, compositores e artistas, não seria exagero dizer que a esquina do Clube da Esquina multiplicou e tornou-se, para além de ponto geográfico, algo simbólico. Patrimônio imaterial da cultura brasileira.
*Carol Mendes, Danilo Akel e Mauro Machado, estudantes de Jornalismo da PUC-Rio, com orientação de professores da universidade e revisão final de Veja Rio.
Este conteúdo integra a conjunto transmídia que reúne produções em texto, áudio e vídeo sobre memória. Foram feitas por estudantes de Comunicação da PUC-Rio, com a orientação dos professores Alexandre Carauta, Chico Otavio, Creso Soares Jr., Felipe Gomberg, Luís Nachbin e Mauro Silveira.