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A redenção pela leitura

Um arrojado programa de bibliotecas instaladas em favelas e áreas degradadas melhora a vida dos seus moradores

Por Letícia Pimenta
Atualizado em 5 jun 2017, 14h04 - Publicado em 17 abr 2013, 14h14
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  • Designado para o comando de uma biblioteca pública em plena favela de Manguinhos, há dois anos, o geógrafo Alexandre Pimentel sabia que teria uma aventura e tanto pela frente. O programa de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), empreendido pela Secretaria de Segurança Pública, ainda não havia chegado por lá e o complexo de casebres era dominado por traficantes ? uma ameaça real aos funcionários e ao amplo prédio de 2?300 metros quadrados, com 27?000 livros e 62 computadores para navegação na internet. Mesmo assim, Pimentel nunca temeu roubos nem invasões. Sua estratégia foi manter as portas abertas e receber bem quem buscava as atividades culturais e o acervo oferecidos pela instituição, parte de um conjunto que hoje agrega um colégio estadual, um centro poliesportivo, uma UPA, uma clínica da família e, mais recentemente, a UPP local. Um sinal claro de que essa “ocupação de território” foi bem-sucedida é a respeitosa reverência com que os moradores do lugar tratam os funcionários e as instalações. Com equipamentos e mobiliário intactos, trata-se do mais perfeito exemplo de organização em meio ao caos. “Eu sempre acreditei no poder civilizador dos livros, e esta biblioteca é a prova disso”, diz Pimentel.

    foto Fernando Lemos
    foto Fernando Lemos ()

    Próximo à linha férrea, o edifício de Manguinhos surgiu como a primeira unidade de um ambicioso projeto que implantará outras doze parecidas no estado. Rocinha e Niterói já ganharam seus templos do saber. Em outubro será a vez do Complexo do Alemão. Estão previstas ainda bibliotecas em áreas como Mangueira e Cidade de Deus. Não existe, evidentemente, coincidência na escolha dessas favelas. A ideia do programa é justamente proporcionar acesso ao conhecimento em áreas que ficaram conhecidas pela violência e pela pobreza. Até aqui, os números são alvissareiros. Em três anos, 344?000 pessoas se registraram e 15?000 frequentam esses espaços regularmente. Ao todo, já foram emprestados 78?000 livros. As preferências são quase as mesmas do pessoal mais jovem do asfalto: histórias de vampiros da série Crepúsculo, as aventuras de Harry Potter e os best-sellers de Thalita Rebouças (veja o quadro na pág. ao lado). Os mais céticos se surpreenderam com o índice de volumes não devolvidos, próximo de zero. Recentemente um leitor da unidade da Rocinha, inconformado com o fato de ter perdido um exemplar que havia tomado emprestado, comprou um novo para ser entregue no lugar. “No início pensamos que a devolução poderia ser um problema, mas esse receio se mostrou totalmente infundado”, diz Adriana Rattes, secretária estadual de Cultura.

    foto Fernando Lemos
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    Desde o tempo em que funcionavam dentro dos mosteiros medievais, as bibliotecas costumam ser vistas como ambientes austeros, onde o silêncio imposto aos visitantes e o rigor dos funcionários inibem quem não está habituado. As unidades da Rocinha, de Manguinhos e de Niterói subvertem essa ideia. Nelas, o espaço faz lembrar as acolhedoras livrarias dos shopping centers, com projeto arquitetônico arrojado, decoração em cores vibrantes e mobiliário moderno que induzem à descontração e à informalidade. Tal configuração poderia facilmente desvirtuar a proposta educacional, mas não foi o que aconteceu. Em Manguinhos, o auxiliar administrativo Leonardo Nogueira Ribeiro, 20 anos, viu na biblioteca um convite à diversão e à bagunça. Rapidamente percebeu que não era bem assim. Foi chamado para uma conversa com a direção ? e mudou de comportamento. Hoje, aborda outros jovens que, como ele, não compreendiam a real função da biblioteca e explica o que acontece ali. Leonardo vai lá todos os dias, após terminar seu expediente em uma loja de informática no Centro. Leitor de Shakespeare, Clarice Lispector e Luis Fernando Verissimo, ele também começou a usar a sala de música para estudar violão e compor. Seu próximo plano é fazer faculdade de design. “Eu amadureci, fiquei mais calmo e focado”, afirma.

    foto Fernando Lemos
    foto Fernando Lemos ()

    Estudos acadêmicos internacionais têm corroborado do ponto de vista científico histórias como a de Leonardo. Uma pesquisa realizada há dois anos por um grupo de educadores americanos com 70?000 jovens de 15 anos em 27 países (o Brasil não foi incluí­do na amostra) comprova que adolescentes de famílias de baixa renda com acesso a livros passam três anos a mais na escola do que os que não leem. Assim, apresentam melhor desempenho em provas e têm mais chances de obter um bom emprego. “Há claras evidências de que a proximidade com os livros pode mitigar os efeitos da pobreza no desempenho escolar e no processo de aquisição do conhecimento”, conclui o linguista Stephen Krashen, professor emérito da University of Southern California e um dos maiores especialistas no assunto. O mesmo efeito pode ser constatado em adultos. Moradora de Bonsucesso, a ex-faxineira Elizabeth Gomes de Moraes, 47 anos, sempre amou os livros. Mãe de quatro filhos e avó de cinco netos, conseguiu uma vaga na organização do acervo da biblioteca de Manguinhos. Fã tanto de Sidney Sheldon como de Machado de Assis, em três anos ela concluiu o ensino médio e foi aprovada no vestibular. Atualmente cursa o 2º período da faculdade de letras, pagando a mensalidade do próprio bolso. “Agora quero acabar de escrever um romance”, planeja.

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    A ideia que norteia todo o projeto de bibliotecas do Rio é manter espaços democráticos e acessíveis, sem catracas à porta. Exige-se cadastro apenas para o empréstimo de livros. Na Rocinha, por exemplo, crianças a partir dos 5 anos de idade podem entrar acompanhadas de adultos ou pré-adolescentes de 10 anos. Depois dos 13, qualquer um pode ir sozinho. “Nosso desafio agora é atrair os mais velhos. Ainda existe muita resistência por parte deles, que só vêm por exigência dos filhos que precisam de um responsável para entrar”, conta Daniele Ramalho, diretora da unidade. A maioria enfrenta a barreira da timidez e do constrangimento, mas quem a rompe não se arrepende. Compositor de sambas, ex-gari e atualmente fiscal da Comlurb, Haroldo César, 50 anos, passava por Manguinhos para produzir um levantamento sobre a coleta de lixo dos novos conjuntos residenciais construídos na área quando deparou com a fachada de cores vivas e os janelões de vidro que dão para o salão principal. Entrou e, de leitor, virou ator do grupo de teatro da biblioteca. Logo começou a ajudar a escrever a primeira peça da companhia e agora colabora com a revista interna Setor X, que traz reportagens sobre a vida na região. Haroldo já lançou dois livros, um deles de crônicas sobre a vida de gari, e está escrevendo o terceiro. “Não me imagino mais longe daqui”, diz ele.

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    Assim como acontece com o teleférico do Complexo do Alemão, hoje um ícone de cidadania e da retomada de regiões conflagradas, o projeto das bibliotecas em áreas pobres, violentas ou degradadas foi inspirado em uma iniciativa semelhante implantada na cidade de Medellín, na Colômbia, a antiga capital do narcotráfico do país. Lá, desde 2006, o governo tem apostado na instalação de núcleos culturais e de apoio à inclusão social como forma de afastar do crime os jovens que moram nas suas imensas favelas. De lá para cá, investiu-se em reformas das escolas públicas e na construção das bibliotecas-parques, que, como o nome sugere, não são apenas locais de leitura, mas modernos complexos arquitetônicos que juntam educação, recreação e cultura. Tendência em vários países, como França, Estados Unidos e Chile, o modelo integra, em um amplo projeto urbanístico, novas mídias, espaços multiuso e áreas onde as pessoas se socializam. Hoje, o sistema de bibliotecas públicas de Medellín conta com 27 unidades, sendo nove no estilo parque, além de centros de pesquisa e documentação que atendem cerca de setenta bairros.

    Ainda pequeno em comparação ao similar colombiano, o programa do Rio começa a ganhar corpo. Para setembro está prevista a reinauguração da Biblioteca Pública do Estado (BPE), planejada como a matriz do programa. Serão 15?000 metros quadrados de área, acervo de 200?000 livros e estrutura para atividades culturais. A obra está linda. O reconhecimento no exterior também já está acontecendo. No ano passado, a unidade de Niterói foi aceita na comunidade internacional de bibliotecas Beyond Access, com sede em Washington, nos Estados Unidos. Reinaugurada em 2011, a unidade passou a receber uma grande quantidade de moradores de rua que viviam em seu entorno. Em vez de usar o local apenas para acessar a internet e aproveitar o ar-condicionado, o grupo foi incentivado a tirar documentos, fazer pesquisas e pegar livros emprestados. Alguns conseguiram emprego, entre eles um jovem casal que passou a fazer reciclagem de latas, alugou um quarto e reconquistou a custódia do filho de 7 meses. “Estamos aqui para fazer com que essas pessoas se sintam acolhidas. É uma troca que não tem preço”, resume a diretora Glória Blauth. Eis aí mais uma prova do poder dos livros de mudar a vida para melhor.

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