Há nove anos, a dona de casa Regina Picinin trocou a rotina tumultuada do Jardim Botânico pelo sossego de Guaratiba, faixa da Zona Oeste conhecida por suas chácaras, hortos, restaurantes de frutos do mar e trilhas ecológicas. Ao optarem por um estilo de vida rural, ela e o marido foram morar em uma casa de dois andares em Ilha de Guaratiba, um dos sub-bairros locais. O casal tem um ganso de estimação no jardim, compra ovos em um sítio vizinho, recebe no portão o vendedor de peixe e cultiva uma horta no quintal. Com a mudança, os dois puderam desfrutar a tranquilidade de cidade do interior sem, no entanto, perder do alcance as benesses da metrópole, que ficaram ainda mais próximas após a inauguração da Transoeste, via expressa que atravessa a região. Agora, grandes shoppings e uma ampla rede de serviços da Barra da Tijuca estão a apenas quinze minutos de carro do refúgio campestre de Regina. Ao facilitar o acesso, a nova pista chamou a atenção para Guaratiba, que, apesar de seu potencial para atrair visitantes, padece com problemas graves de infraestrutura, entre eles a falta d?água, o saneamento pífio, a favelização e o crescimento desordenado. “Fomos esquecidos pelo poder público”, queixa-se Regina. “Mas gosto tanto daqui que vou driblando essas carências.”
A rua de terra batida onde fica a residência da dona de casa é uma síntese da paisagem contrastante da região, dividida entre uma natureza exuberante e o abandono. Toda esburacada e sem calçamento, a via abriga imóveis comerciais e residenciais. Há endereços de luxo, de classe média, casebres, fábricas, galpões e terrenos baldios usados como depósito de lixo. Naquele pedaço não existe rede de esgoto, mesma mazela que afeta 50% das moradias do bairro, com média bastante inferior à do município, onde nove de cada dez residências não dispõem de saneamento. Outro problema diz respeito à água, captada diretamente de um córrego por meio de canos improvisados, que ficam à mostra quando chove. Para cobri-los após os temporais, os próprios moradores providenciam a terra e o trator. Um episódio recente dá bem a dimensão do descaso por parte das autoridades. Uma moradora ligou para o serviço 1746, central de atendimento da prefeitura, solicitando o asfaltamento da via. Do outro lado da linha, a atendente alegou ser impossível registrar o pedido porque a rua em questão não existia. Ela não só existe como é exemplar do crescimento desordenado que assola o lugar. Embora ainda esteja em vigor a legislação de 1970, que estabelece o limite de apenas uma construção de até oito andares para cada lote de 10?000 metros quadrados, há terrenos de diversos tamanhos e ocupados por imóveis de todos os tipos. Lotes de grande dimensão são difíceis de encontrar, já que nas últimas três décadas eles foram retalhados para dar lugar a condomínios. “O absurdo chega ao ponto de um fiscal da prefeitura construir quitinetes em seu terreno para ser vendidas”, denuncia José Maria Herdy, dono de um horto.
Localizada ao pé da Serra da Grota Funda, a região de vegetação rasteira e extensos manguezais se estende até a Baía de Sepetiba, outra parte um tanto degradada devido ao despejo de esgoto doméstico e de substâncias industriais. Com população de 110?000 habitantes, Guaratiba ainda pode se orgulhar de ser uma das áreas com menor densidade demográfica do Rio, semelhante à Barra da Tijuca nos anos 70. No entanto, graças à abertura da Transoeste e do Túnel da Grota Funda, o bairro vive a perspectiva de uma fase de expansão que divide os moradores. Uns temem pelo fim da tranquilidade, enquanto outros veem uma grande oportunidade para impulsionar o crescimento econômico de uma região durante tanto tempo esquecida. “Não podemos ser contra o progresso, mas ele deve acontecer preservando nossa tradição”, afirma Paulo Rodrigues, da Associação de Produtores Rurais de Guaratiba. Moradores, comerciantes, empresários e construtores aguardam a conclusão do novo Plano de Estruturação Urbana (PEU) de Guaratiba, que está em fase de elaboração e será levado à Câmara dos Vereadores até o fim do ano. Entre outras modificações, ele deve prever lotes entre 125 e 5?000 metros quadrados, com construções de até seis pavimentos, variando de acordo com as características de cada zona. Como ainda será submetido a audiências públicas, o plano pode sofrer alterações. “O novo PEU atende basicamente a uma situação já existente. Não estamos inventando nada”, diz o secretário de Urbanismo, Sérgio Dias.
Por ora, as ideias para fomentar o desenvolvimento e estimular a vocação turística e gastronômica daquele pedaço saem da cabeça dos empreendedores locais. Um dos projetos do grupo de produtores rurais é o Polo de Plantas Ornamentais, que prevê formação de mão de obra, abertura de linhas de crédito e um centro de vendas e exposição permanente no ponto próximo à saída do Túnel da Grota Funda. “Além de se tornar um cartão de visitas, a iniciativa acabaria de vez com as tentativas de invasão naquela área”, afirma a bióloga Adelaide Santos, diretora da associação. Conciliar o planejamento urbano e a manutenção de um dos últimos redutos rurais da cidade será um desafio para os próximos anos.