As bandas Blues Etílicos e Boogie Nights estiveram entre as últimas a tocar no finado Canecão. Depois de perder o patrocínio da Petrobras, a casa de shows mais tradicional do Brasil atravessou uma guerra de liminares que culminou no seu fechamento definitivo, em outubro de 2010. Inaugurada em 1967, a cervejaria-casa de espetáculos nunca funcionou exatamente dentro da lei, ocupando um terreno da UFRJ que, pelas normas, não poderia abrigar um imóvel destinado ao entretenimento.
Após décadas de brigas jurídicas, o Titanic foi afundando, e as duas bandas – o principal nome do blues carioca e o grupo especializado no repertório dos anos 1970 – se apresentaram já durante o naufrágio. “Estreamos quando já estava acabando e quase não recebemos. Fomos lá com cara de mau cobrar. Deu certo”, recorda Flávio Guimarães, do Blues Etílicos. O mesmo não aconteceu com a Boogie Nights. “Nosso ‘cachê simbólico’ foi o cartaz da festa, pintado em uma parede na fachada, que ficou lá por um ano, fazendo propaganda da banda”, conta o tecladista Helvecio Parente.
Desde então, o Canecão apodrece a céu aberto. Primeiro, a UFRJ marcou o território com cartazes, depois vieram os grafites, o movimento Ocupa Canecão – que recebeu em 2016 artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso para shows de apoio a estudantes nos escombros – e, agora, o prédio sente as consequências do abandono. “Recuperar a casa deve custar o mesmo valor que o necessário para construir uma nova”, estima Carlos Wainer, ex-coordenador do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, responsável pelo espaço enquanto esteve no cargo. Mas há esperança.
Está em andamento uma tentativa de reerguer o emblemático palco. O nascimento de uma nova casa de espetáculos no lugar do antigo Canecão passa pelo projeto VivaUFRJ, previsto para começar este ano, mas adiado por causa da pandemia. As negociações, porém, não pararam. Uma comissão trabalha para viabilizar a cessão de parte dos terrenos da universidade para a iniciativa privada, com a contrapartida de reconstruir o Canecão, além de laboratórios, alojamentos e outros equipamentos para a UFRJ, em um contrato com duração de cinquenta anos.
“Encomendamos um estudo ao BNDES, que acabou atrasando, mas deve ficar pronto em breve”, diz Nadine Borges, diretora executiva do VivaUFRJ. “Já tivemos várias reuniões com a prefeitura, com os moradores, e o trabalho todo está sendo acompanhado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e por entidades ambientais e urbanísticas, para que tudo seja feito de acordo com a lei”, acrescenta.
As conversas estão bem encaminhadas, mas, em se tratando de Canecão, toda a prudência é recomendada antes de dar o imbróglio por resolvido. Um dos muitos projetos que não seguiram em frente mencionava a volta à ativa do espaço até 2019. “Fui a diversos encontros com a universidade, autoridades e gente do mundo da música para discutir o que poderia ser feito ali”, lembra Marcelo Castello Branco, presidente da União Brasileira de Compositores e profissional envolvido há décadas com música e entretenimento.
Em sua concepção, o ideal seria separar um ou dois dias por semana para a UFRJ, para shows, workshops e outras atividades, e abrir a casa no formato comercial no restante do tempo, recuperando assim o mais importante espaço de shows da Zona Sul do Rio.
“Muitos capítulos relevantes da história da MPB foram escritos naquele palco. Eu estava lá quando Caetano cantou Todo Amor Que Houver Nessa Vida pela primeira vez, e isso fez decolar a carreira do Cazuza”, recorda. Para que a nova casa não caia na mesma infração do Canecão, a de funcionar em uma área residencial, a legislação do local terá de ser alterada. “A região precisa ser convertida em Área de Especial Interesse Funcional”, explica João Carlos Ferraz, professor de economia da universidade, envolvido na empreitada.
O projeto, que embora tocado há um ano ainda precisa passar por muitas fases, já gera discordâncias. “O Canecão foi muito importante na história da MPB, mas era um inferno para nós. Havia uma gangue que estacionava os carros por toda parte, principalmente em locais proibidos, e, quando os shows acabavam, começava um buzinaço que acordava a vizinhança inteira”, diz Abílio Tozini, presidente da Associação de Moradores da Rua Lauro Müller e Adjacências (Alma).
Os responsáveis pelo projeto garantem que o processo passará por todos os debates necessários. “Esse estudo ainda vai para a universidade para que seja discutido”, avisa a diretora Nadine. Enquanto nada acontece, ficam as memórias do velho Canecão, casa preferida de Chico Buarque, Maria Bethânia e tantos outros que dali se projetaram para o mundo.
“Toquei a última nota do último show do Canecão”, revira as lembranças o baixista Zé Luiz Maia, que acompanhou Bibi Ferreira na derradeira apresentação, em 16 de outubro de 2010, concluída com o hino de Édith Piaf, Je Ne Regrette Rien (Não, Eu Não Lamento Nada, na tradução para o português). Seus versos não poderiam ser mais oportunos àquele momento. “Saí de lá pensando nisso, tínhamos encerrado um capítulo da história da música brasileira.”
Na história da música
Passagens que marcaram a trajetória da casa de shows