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Cariocas que deixaram o Rio voltam e apostam na recuperação da cidade

Mesmo com a maré ainda baixa, uma turma decidiu dar nova chance ao Rio — e trabalha todos os dias por ele

Por Pedro Tinoco
Atualizado em 13 fev 2020, 11h24 - Publicado em 5 fev 2020, 13h06
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  • Você ficou maluco?” A pergunta, repisada por parentes e amigos, não desanimou o engenheiro carioca Ricardo Brigante, 40 anos. Funcionário da multinacional de gases industriais Linde, ele trocou a terra natal pelos Estados Unidos em 2016 e, desde então, levava vida de comercial de margarina nos arredores de Houston, Texas. Naquela rotina cercada de confortos do Primeiro Mundo, porém, faltava algo. Após muita conversa em casa, Brigante decidiu aderir a um plano de demissão voluntária e, ao lado da mulher e do filho, aportou no Rio no último dia 13 de dezembro. Chegou para ficar, desempregado e feliz. Sem alarde, na contramão das estatísticas, cariocas — da gema ou por adoção — vêm fazendo esse movimento de retorno sem pestanejar. Voltaram a morar nestas praias em tempos de crise econômica, polarização política, violência urbana e ainda água suja jorrando das torneiras. “Você ficou maluco?”, ouviram, mas não deram bola. Eles desembarcam cheios de saudade de uma cidade plural, acolhedora, rica em história e cultura, e estão dispostos a tudo para reencontrá-la. A experiência dessa turma aponta saídas — e nenhuma delas passa pelo Galeão.

    O engenheiro Ricardo Brigante: o reencontro com os hábitos cariocas já compensou
    O engenheiro Ricardo Brigante: o reencontro com os hábitos cariocas já compensou (Leo Lemos/Veja Rio)

    A maré, como se sabe, não anda mesmo boa. Às crises nacional e mundial, o Rio de Janeiro acrescentou um rosário de tormentos próprios. Ali pelo início dos anos 2010, o cenário era, curiosamente, de altas expectativas, beirava a euforia. Novos negócios brotavam na área do petróleo, aliados aos preparativos para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, alavancando as estimativas de investimentos no estado para além de 180 bilhões de reais. O Rio parecia que ia finalmente decolar, como apostou a icônica capa da revista inglesa The Economist, em 2009, com o Cristo Redentor descolando-se do Corcovado como um foguete. Em 2013, o monumento-foguete reapareceu desgovernado na capa da mesma publicação. Seguimos ladeira abaixo, bombardeados por vultosos desvios flagrados na Operação Lava-Jato, governantes na cadeia, desequilíbrio das contas públicas, desemprego e outras mazelas. Nestes últimos quatro anos, Ricardo Brigante estava longe, na sossegada periferia de Houston. “Às 8 e meia, 9 da noite, era um silêncio, as casas todas fechadas, jardins vazios. Ficava imaginando essa vizinhança no Grajaú, onde nasci. Ia ter cadeira na porta, conversa fiada, churrasquinho”, lembra. Que ninguém se engane: a família Brigante viveu bons momentos, pessoais e profissionais, nos Estados Unidos. Mas, posto tudo na balança, venceu o Rio. “Queria que meu filho tivesse contato com a família, com as origens. Além disso, sempre curti essa característica só nossa de encontrar os amigos sem marcar, na rua, no samba, no botequim”, conta ele.

    Guilherme e Bia: o casal decidiu deixar a vida em Nova York para abrir um espaço cultural no Rio
    Guilherme e Bia: o casal decidiu deixar a vida em Nova York para abrir um espaço cultural no Rio (Leo Lemos/Veja Rio)

    Feliz feito pinto no lixo, o engenheiro planeja empreender. Embora tenha ouvido mais uma vez a fatídica pergunta (“Você ficou maluco?”), está decidido a investir na cidade. “Vai ser algo que una minhas paixões, bar, música, encontros com amigos”, despista. Bia Monteiro e Guilherme Martins Pinheiro já começaram: em agosto de 2019, o casal abriu o Abapirá – Mercado de Textos e Imagens, espaço para exposições e oficinas, além de editora artesanal. Ela é artista plástica e já exibiu suas obras em galerias na Alemanha, China, Estados Unidos, Itália e Japão, e ele, advogado convertido ao estudo crítico da arte. Em 2014, com os dois filhos, deixaram o Rio por Nova York, onde Bia fez mestrado em artes no International Center of Photography (ICP). A partida soava definitiva, tanto que eles venderam a casa onde moravam. Outro imóvel da família, um espaçoso sobrado do século XIX na Rua do Mercado, permaneceu fechado. “É uma construção tombada, tem custo baixo, não pagamos IPTU, e eu não queria transformá-la em bar ou restaurante”, diz Bia. Na volta ao Rio (motivada pela falta que sentia “do calor humano, da disponibilidade emocional, de andar descalça”), o casarão aguardava o casal.

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    Os cariocas repatriados buscam encantos da cidade que não existem fora daqui, mas não fecham os olhos para o leque de problemas. Paulo Barcellos, 43 anos, perde a linha com a sujeira que encontra nas praias. “O carioca não pensa nos outros, curte a praia e deixa seu lixo lá, reclama do governo mas não paga imposto”, bronqueia o campeão mundial de bodyboard de 2000, hoje requisitado fotógrafo aquático. Barcellos nasceu em São Paulo, mudou-se para o Rio aos 9 anos, foi morar na Barra, à beira-mar, e nunca mais quis outra vida. Levado pelo circuito de competições, cumpriu temporadas no Havaí atrás das altas ondas e acabou ficando por lá durante oito anos. Depois de voltar para o Rio, celebrou o Natal com a família, em 2019, pela primeira vez em mais de duas décadas. “Este é um dos lugares mais lindos do mundo. Os políticos passam e a cidade fica. Voltaremos a ser grandes, é questão de tempo”, acredita.

    Paulo Barcellos
    Paulo Barcellos deu adeus ao Havaí: ele acredita na capacidade do Rio em dar uma virada” (Leo Lemos/Veja Rio)

    A projeção otimista de Paulo Barcellos é fundamentada por gente que estuda o assunto a fundo. Arquiteto e urbanista, Wash­ing­ton Fajardo já foi presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e comandou o Conselho Municipal de Patrimônio Cultural da cidade. Em 2019, foi selecionado para um programa na Universidade Harvard, onde segue como pesquisador, dedicado à análise de políticas habitacionais. Dali tira combustível para pensar o Rio. Quer voltar, ele também, ainda em 2020. Fajardo aposta as fichas na expansão do Porto Maravilha. “Não há no país outra capital com tanta área para edificação. O centro histórico é o lugar para inovação, com pequenas, médias e grandes empresas reunidas, além de diversidade social e racial, o que acaba por fortalecer a democracia. É preciso investir na função habitacional. Em qualquer transformação urbanística, a chave do sucesso é gente morando”, explica. Ele acha que a mudança está nas mãos de “cidadãos, investidores e poder público”, mas desconfia dos atuais representantes do último grupo. “A cidade está mal gerida, com figuras políticas estranhas nos níveis municipal e estadual. (O prefeito) Crivella não sabe ler o Rio, não entende suas características.”

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    A crise está aí, e nem o mais ufanista dos cariocas vai dizer o contrário, mas o Rio tem saída(s). Para Fajardo, de certo modo o futuro está no passado. “A face que olha para a inovação, a face jovem, deve mirar o Porto Maravilha, o Centro Histórico, e não a Barra, que parece moderna, mas é constituída de um urbanismo velho”, compara. Está em jogo no tabuleiro da expansão carioca, além do Porto Maravilha, o Centro Metropolitano da Barra — dois quinhões da cidade de tamanho próximo ao do bairro de Laranjeiras. Claudio Hermolin, presidente da Associação de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi-RJ), vislumbra avanços em ambas as áreas. “O Porto Maravilha tem localização ímpar e estrutura de mobilidade que garante potencial incrível de crescimento e valorização. E a Barra tem a praia, que impulsiona os preços”, diz.

    As cifras no mercado imobiliário, como se sabe, flutuam muito de acordo com a situação no entorno. “No Rio, é possível aumentar a atratividade de certas áreas com a melhora da segurança pública e a retomada dos investimentos em infraestrutura. O metrô da Gávea, o BRT Transbrasil e outras obras fundamentais estão parados”, observa Hermolin. Pesquisas feitas pela Ademi ao longo de 2019 já traziam sinais de recuperação. A luzinha no fim do túnel também pisca em prospecções da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) e no planejamento da Petrobras (veja o quadro abaixo).

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    Razões para acreditar (Reprodução/Veja Rio)
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    A movimentação no setor de óleo e gás, a propósito, pesou para que Cristiano Pinto da Costa, carioca do Andaraí, criado na Tijuca e flamenguista fervoroso, interrompesse uma temporada de dezoito anos no exterior. Engenheiro químico formado pela UFRJ, ele começou na Shell como estagiário, foi contratado em 1996 e fez carreira na multinacional petrolífera anglo-holandesa. Entre 2000 e 2018, essa trajetória foi cumprida em Londres, Haia e Houston. Na capital americana do petróleo, lotado na área de novos negócios e investimentos, ele acompanhou a recuperação do setor, após forte retração entre 2014 e 2016. A retomada foi em grande parte impulsionada pelo desenvolvimento do pré-sal brasileiro. “Senti o mercado inteiro querendo fazer negócio com o Brasil de novo e vi a oportunidade de retornar”, lembra.

    Morador da Barra, nos fins de semana ele bate bola nas areias do Leblon. “Antes, vou à feira com minhas filhas, volto para casa e tomamos café. Depois da praia e do vôlei, há sempre um chopinho, a gente belisca. Isso quando não tem churrasco com os amigos, os filhos todos brincando juntos”, esnoba, feliz. Perdeu, Londres! Na sede da Shell Brasil, no 32º andar de um edifício da Avenida Chile, no Centro, o escritório de Cristiano tem janela que dá para cartões-postais em série: Arcos da Lapa, Marina da Glória, Baía de Guanabara, Cristo Redentor, Pão de Açúcar. “Conheci mais de cinquenta escritórios da Shell no mundo e nenhum tem uma vista tão fenomenal. O pessoal que vem aqui visitar fica de queixo caído”, outra vez esnoba o executivo.

    Caçula nessa lista de bons cariocas que a casa tornam, Kim Battaglin tinha 15 anos ao deixar o Rio, em 2008, e passou outros doze na Califórnia. Partiu com a família quando seu pai, o surfista Pedro Battaglin, recebeu uma proposta de trabalho no exterior. Depois de terminar o ensino médio e cursar cinema na San Diego State University, a menina apaixonada por novelas brasileiras e pelo cinema de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos retornou antes dos pais, que ainda vivem na Califórnia, para a Ipanema onde foi criada. Kim adora surfar, claro, e saboreia as ondas do Arpoa­dor. Também relaxa na Cachoeira do Horto, ou em meio ao verde do Jardim Botânico e do Parque Lage. Ela acaba de renovar contrato como roteirista na TV Globo, emissora em que já fez séries como Onde Nascem os Fortes (2018) e a segunda temporada de Filhos da Pátria (2019).

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    Kim Battaglin trabalha aqui na área de audiovisual: “A cidade evoluiu”, avalia ela
    Kim Battaglin trabalha aqui na área de audiovisual: “A cidade evoluiu”, avalia ela (Leo Lemos/Veja Rio)

    Quando se afastou de Hollywood para trabalhar com audiovisual por aqui, Kim não foi acusada de louca, como outros personagens desta história. “Diziam que voltar para o Rio era andar para trás, mas quem passa tanto tempo fora nota a evolução no transporte, nos serviços e até na variedade de cervejas”, resume, com a devida pitada de galhofa carioca. Brigante, o engenheiro que deixou o emprego nos Estados Unidos para empreender no Rio, comemorava outro dia o privilégio de ter esbarrado, durante uma batucada na Rua do Ouvidor, com o compositor Paulo César Pinheiro, parceiro de Maurício Tapajós no samba Tô Voltando (dos versos “Pode ir armando o coreto / E preparando aquele feijão-preto / Eu tô voltando”, gravados por Simone e Chico Buarque). “Só o Rio tem dessas coisas. Alguém disse que ‘a vida é perto’, e é verdade. Essa máxima não sai da minha cabeça”, conta. Quem disse isso foi Millôr Fernandes (1923-2012), não por acaso carioca de quatro costados, nascido no Méier e prócer da República de Ipanema. Para essa turma que, assim como VEJA RIO, está voltando a circular pela terra de Millôr e outros bambas, deixamos sinceros votos de boas-vindas e uma convocação: mãos à obra!

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