Campeã do já longínquo desfile das escolas de samba de 2020, o último da era pré-pandêmica, a Viradouro finalmente desembarcará na Avenida em um sábado de Carnaval bem diferente de qualquer outro — este será em abril. Mestre Ciça estará à frente da furacão vermelho e branco, dando o tom da tão aguardada festa. Aos 65 anos, o mais veterano entre os mestres de bateria em atividade, com meio século de Sapucaí ao lado de rainhas como Luma de Oliveira e Juliana Paes, promete conferir gás único à sua turma de modo a tornar inesquecíveis trechos do atual samba-enredo, Não Há Tristeza que Possa Suportar Tanta Alegria! — emblemático, aliás, desta celebração fora de época. A agremiação de Niterói vai usar como mote uma carta assinada por um pierrô apaixonado à sua amada colombina em 5 de março de 1919, no épico Carnaval pós-gripe espanhola. Quando chegar a hora de entoar os versos Tirei a Máscara no Clima Envolvente / Encostei os Lábios Suavemente / E Te Beijei na Alegria sem Fim, com fantasias em alusão ao Bola Preta, Ciça e a nova soberana na dianteira das batucadas, Erika Januza, querem surpreender. “Estou preparando um movimento para marcar este momento dentro do samba, que fala de superação”, avisa o mestre. “Dizem que aquele foi o maior Carnaval do Brasil. Pois este vai ser ainda melhor!”
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Coroada em novembro de 2021, Erika não vê a hora de poder reinar pela primeira vez no templo maior do samba. E explica: “Não é só por ser minha estreia como rainha, mas por tudo o que o Carnaval representa no Rio de Janeiro e no país: será como respirar de novo”. No curso da história, a própria farra momesca surgiu como expressão de um respiro — os novos ares que começaram a circular pela sociedade brasileira pós-abolição, no fim do século XIX —, dando voz a quem não tinha. Como lembra o historiador e escritor Luiz Antonio Simas, as escolas de samba fortaleceram a sociabilidade da população negra recém-absolvida e contribuíram para a construção de sua identidade, um marco na formação da cidade como um todo. “Carnaval de rua tem em muitos lugares. O que caracteriza o nosso é o cortejo, com o maior conjunto de manifestações simultâneas: drama, artes plásticas, fantasias, música”, resume Simas, que dá a dimensão do regresso ao Sambódromo após tantos sacolejos provocados pela pandemia. “Não conheço nenhum Carnaval que não seja, em alguma medida, de superação. Este será o da ressurreição.”
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Seis das doze escolas do Grupo Especial escolheram abordar a temática racial e vão enaltecer traços da cultura africana justamente um mês antes de o assassinato do americano George Floyd, por asfixia, completar dois anos. O crime desencadeou uma onda de protestos em que se agitavam faixas contra o racismo e a violência policial, da qual Floyd foi vítima. “Será o desfile do resgate da voz das pessoas pretas, clamando por igualdade”, empunha sua bandeira Selminha Sorriso, que em 2022 faz bodas de diamante na Sapucaí: são trinta anos evoluindo com o mestre-sala Claudinho, com quem se reencontrou só em agosto de 2021, após catorze meses de distanciamento social. Nos primeiros ensaios, o retorno dos salamaleques exigiu muito álcool em gel nas mãos e máscaras nada carnavalescas no rosto, que escondiam sua conhecida marca registrada. “Eu não era a Selminha Sorriso”, relembra ela, que também é bombeira e, como não perdeu o salário de servidora pública, ajudou amigos em dificuldade nos mais agudos momentos da crise.
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A falta de dinheiro atravessou o samba de gente bamba como Carlinhos Salgueiro, destaque, diretor de passistas e responsável pela equipe show da vermelho e branco da Tijuca — que virou seu sobrenome. Passado o desfile das campeãs de 2020, ele estava de malas prontas para sua 33ª viagem internacional a trabalho pela agremiação. Aí veio a quarentena. Sem o habitual ganha-pão, as economias foram minguando, e Carlinhos acabou acometido por uma depressão. “Minha cura foi voltar a este ofício, que é a maior das terapias”, conta ele, que imprime o ritmo do samba no pé de sessenta passistas. Para a rainha de bateria da Portela, Bianca Monteiro, o afastamento da Sapucaí e a morte de uma tia por Covid-19 também pesaram. “Com medo e superansiosa, comi até as paredes. Fiquei deprimida, não fazia exercícios, engordei 12 quilos”, relembra ela, nascida e criada em Oswaldo Cruz e já em forma novamente para encarar o desfile. “Aprendi a fazer lives solidárias, distribuí quentinhas para pessoas em situação de rua, vendi rifas. Ser rainha só é válido quando você se torna mesmo rainha”, acredita.
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Noves fora toda a tristeza de tempos de tantas perdas acumuladas, o inédito adiamento do desfile para abril acabou trazendo certos benefícios — a começar pela Passarela do Samba, que está de piso novo após doze anos. “Como não houve Carnaval em fevereiro, aproveitamos para fazer obras de recuperação, consertamos vazamentos, cuidamos da estética e do conforto para o público”, diz o presidente da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), Jorge Perlingeiro. “Estamos praticamente estreando uma nova Avenida.” Além de acabar com o problema das grandes poças d’água (com a retirada de 7 centímetros do asfalto antigo e a troca dos ralos, que eram pequenos), as arquibancadas ganharam guarda-corpos e pintura. “Este será o primeiro desfile com iluminação cênica, recurso que as escolas ainda precisam aprender a usar bem. Mas já faremos uso dele nos intervalos, nas arquibancadas, brincando com as cores”, acrescenta Perlingeiro. “É uma grande vitória após um período de lutas e incertezas.”
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Para as escolas, a realização deste Carnaval em pleno outono carioca também abriu portas em meio aos obstáculos. Na visão de Marquinho Marino, diretor de Carnaval da Mocidade, exceto pelo aspecto financeiro — afinal os gastos subiram com tantas idas e vindas —, o adiamento foi melhor em muitos sentidos. “Cantores, ritmistas, passistas tiveram mais tempo para se preparar. Os componentes puderam pegar melhor o samba, sem contar que, pela primeira vez, não viramos noites”, enfatiza ele, que viveu sua própria história de superação nestes tempos ásperos. Em maio de 2020, Marquinho pegou Covid, ficou internado cinco dias na UTI e tomou um baita susto. Na Mocidade, foram cerca de cinquenta componentes vítimas do vírus, incluindo baianas e integrantes da bateria. Felizmente, esse capítulo ficou para trás, cedendo espaço a outro, embalado pelo otimismo. O fato de desfilar depois que as águas de março tradicionalmente fecham o verão deste Rio 40 graus anima Tia Glorinha, 75 anos, presidente da ala das baianas do Salgueiro. “O clima fica mais fresco e as chances de chover diminuem”, observa, entusiasmada com a oportunidade de as companheiras poderem rodar com mais leveza em suas fantasias de até 15 quilos que ficam mais pesadas quando molhadas.
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Celebrado pela Vila Isabel, Martinho da Vila definitivamente não vê tempo ruim. Aos 84 anos, o autor de Devagar, Devagarinho jura que não está ansioso, mesmo tendo aguardado por anos pelo tributo de sua própria escola. A Vila havia proposto que o sambista fosse tema do desfile de 2010, mas ele mesmo declinou sugerindo que o centenário de Noel Rosa viesse antes. Quando finalmente aceitou a homenagem, prevista para o Carnaval de 2021, teve de esperar que a pandemia desse uma trégua para, enfim, assistir à sua vida passar pela Avenida. “Acho que vou na Comissão de frente, tenho de dar um jeito de ver tudo. Será muito forte, todo mundo está querendo brincar”, avalia o compositor, pronto para cantar a plenos pulmões versos como Tão Bom Cantarolar porque o Mundo Renasceu / Me abraçar com Esse Povo Todo Seu, que encerrarão esse tão especial Carnaval, já que a azul e branco fecha o expediente na Sapucaí na madrugada do domingo. “Carnaval é uma celebração da vida, e este é um momento em que a gente necessita disso. Já temos tantas tristezas, precisamos desta alegria restaurada”, diz a escritora e pesquisadora Rachel Valença, que, aos 77 anos, completa agora cinquenta de desfiles, os dez últimos na velha guarda do Império Serrano. O show tem que continuar — e não há dúvidas que este ano trará doses extras de emoção.