Escondido em um vale da região de Riograndina, em Nova Friburgo, o Mosteiro da Santa Cruz é um lugar que convida à meditação. A placidez da serra fluminense, entretanto, camufla um ambiente em que fervilham conspirações e intrigas que culminaram em uma rebelião contra o próprio Vaticano. Os monges, padres e bispos ali encastelados (vários deles estrangeiros) criticam o que consideram excessos liberais do papa Francisco, rezam as missas em latim e vigiam de perto a conduta de seus fiéis. Nas últimas semanas, passaram também a constituir os próprios prelados à revelia da cúpula católica, em uma clara afronta às determinações de Roma. No último dia 19, o padre francês Jean-Michel Faure foi consagrado bispo durante a festa de São José. No comando da cerimônia estava o bispo inglês Richard Williamson, um dos principais expoentes do tradicionalismo católico. Com a consagração não autorizada, Williamson e Faure estão automaticamente excomungados por violar a lei canônica. Nem eles nem seus companheiros parecem se importar muito com isso. Em uma nova provocação, no último sábado, 28, véspera do domingo de Ramos, Faure ordenou padre o monge nicaraguense André Zelaya de León, um dos nove internos do monastério. “Nunca recebi nenhum comunicado de que estou fora da Igreja, portanto me julgo capaz de exercer minhas atribuições de bispo”, disse Faure depois da celebração. O responsável pela instituição, o beneditino dom Tomás de Aquino Ferreira da Costa, é bem menos político em suas declarações. “Não seguimos a doutrina do papa. Ele é menos católico que nós”, atacou.
A disputa entre os religiosos de Friburgo e seus superiores tinha tudo para ser apenas uma futrica de sacristia, mas acabou ganhando uma projeção inesperada. A rebelião virou notícia em jornais europeus como o italiano La Stampa, o alemão Frankfurter Allgemeine e o inglês The Guardian. Tudo por causa da presença de Richard Williamson no mosteiro. Nascido em Londres, o bispo de 74 anos representa uma das vertentes mais reacionárias do catolicismo e já se envolveu em encrencas que deram severas dores de cabeça ao Vaticano. A maior de todas aconteceu em 2009, durante o pontificado de Bento XVI. Durante uma visita à Alemanha, Williamson concedeu entrevista a uma emissora de TV da Suécia. Em meio a louvores à tradição católica, deixou transparecer suas convicções antissemitas, negando a existência de câmaras de gás nos campos de extermínio nazistas. O que se seguiu foi um escândalo gigantesco, que enfureceu a chanceler Angela Merkel e constrangeu o papa, alemão de nascimento. Na época, Williamson dirigia um seminário nos arredores de Buenos Aires, na Argentina, de onde foi expulso. Foi processado na Alemanha e, três anos depois, também acabou sendo expulso da congregação da qual fazia parte, a ultraconservadora Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Desde então, Williamson andava meio sumido. Até reaparecer no início do mês em Nova Friburgo. Procurado pela reportagem no convento, o inglês mandou avisar que estava descansando e não iria dar entrevista. Mas em blogs católicos é possível encontrar trechos de pronunciamentos e textos de sua lavra nos quais ataca o papado de Francisco, como o e-mail em que qualificou a atual cúpula da Santa Sé de “cucos modernistas”, uma referência à ave oportunista que põe seus ovos no ninho de outras espécies.
Quem assiste a uma cerimônia conduzida pelos religiosos tradicionalistas tem a impressão de viajar no tempo. Os homens chegam de paletó e gravata em cores escuras e as mulheres usam vestido discreto e têm a cabeça coberta por véu rendado. Os dois grupos ficam em espaços separados na igreja e todos trazem o semblante contrito. Os padres usam vestimentas pomposas, com adereços e detalhes dourados caídos em desuso nas cerimônias convencionais. O ritual é em latim e o celebrante reza de costas para os fiéis — um tipo de solenidade chamada de missa tridentina. Estranhos são recebidos com desconfiança e costumam ficar sob a guarda de religiosos pouco amistosos, como o padre chileno René Trincado. Na celebração do sábado 28, era dele a responsabilidade de cadastrar os forasteiros, que, além de ter de deixar nome e endereço, eram fotografados. Criado em 1987, o mosteiro é a parte central de um pequeno complexo formado ainda por um convento de freiras, uma igreja dedicada a São Miguel e um colégio para crianças da região, chamado São Bento e Santa Escolástica. Dentro da propriedade de 30 hectares vivem algumas famílias, que são proibidas de ver televisão, ouvir rádio e fazer uso de métodos anticoncepcionais. “Se alguém se casa e não nascem filhos, eles vão investigar o que está acontecendo”, conta um vizinho da propriedade, amigo de uma das famílias e que pediu para não ser identificado. “Se aparecer uma camisinha lá dentro, vira uma confusão dos diabos”, diz ele. Apesar do apego ao passado, o procedimento de arrecadação de donativos é bem moderno. No site do mosteiro há instruções para depósitos em bancos no Brasil, na França, na Suíça e na Alemanha, além de orientações para transferência de valores pela internet, por meio de PayPal.
A súbita notoriedade do Mosteiro da Santa Cruz tem incomodado profundamente o bispo diocesano de Nova Friburgo, dom Edney Gouvêa Mattoso. No dia seguinte à consagração clandestina conduzida por Williamson, dom Edney escreveu uma carta ao sumo pontífice. O documento foi entregue ao núncio apostólico do Vaticano no Brasil, dom Giovanni D’Aniello. Além de reclamar com o papa, o bispo pediu a seu rebanho para ficar longe do território dos rebeldes. “Cabe-me exortar todos os fiéis católicos a cumprir o grave dever de permanecer unidos ao papa na Igreja Católica, e de não apoiar de modo algum essa ilegítima ordenação episcopal e as consequências que dela advirão”, alertou em uma nota oficial. Entre os fiéis da cidade, comenta-se que dom Edney anda “cuspindo marimbondos” e até prometeu excomungar quem se aproximar do mosteiro. Os bastidores da batalha entre o bispo e os revoltosos, aliás, são dignos de filme. A cúria friburguense chegou a plantar um espião entre os inimigos, com a missão de saber todos os detalhes da vida cotidiana, das festas religiosas e até o que se fala nas cerimônias. Há cerca de dois anos, dom Edney tentou se aproximar de dom Tomás, que sempre recebeu muitos hóspedes do exterior em seu mosteiro. Foi pessoalmente visitar o desafeto, mas o encontro não durou nem dois minutos. “Beijei o anel dele, mas nossos caminhos são tão diferentes que o relacionamento é nulo”, explica dom Tomás, entre irônico e sarcástico. Dom Edney não quis falar com a reportagem. Também procurados, calaram-se a respeito do assunto a Nunciatura Apostólica, em Brasília, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Arquidiocese do Rio de Janeiro.
Os católicos tradicionalistas surgiram no início dos anos 1970, a partir de um grupo de clérigos insatisfeitos com as mudanças propostas pelo Concílio Vaticano II, encerrado em 1965. O bispo francês Marcel Lefebvre (1905-1991) assumiu a liderança dos descontentes e criou a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, na Suíça. Atualmente, o grupo conta com 600 sacerdotes e cerca de 400 000 seguidores em todo o mundo. Foi Lefebvre quem consagrou Williamson bispo em 1988. No Brasil, o mais notório expoente desse grupo foi o bispo de Campos, dom Antonio de Castro Mayer (1904-1991), que deu grande apoio à instalação do Mosteiro da Santa Cruz. Dentro do panorama atual da Igreja, o grupo de Friburgo é visto como uma cisão entre os próprios tradicionalistas. A maioria desses religiosos tem se composto politicamente com a Santa Sé. Não são incomodados, desde que não questionem a autoridade eclesiástica ou papal. É justamente nesse ponto que o grupo de Nova Friburgo se diferencia dos demais. “O que tem acontecido ali é como uma ferida para a Igreja. E ninguém sabe lidar com o problema que eles estão criando”, diz um padre muito influente entre as ordens religiosas do Rio. Os planos dos padres revoltosos são ambiciosos. Williamson já criou um outro grupo no ano passado, batizado de União Sacerdotal Marcel Lefebvre. Ele e seus companheiros pretendem ordenar em breve mais dois bispos para disseminar seu descontentamento com o papado liberal de Francisco. O francês Faure, cheio de orgulho, tem até apelido para o racha: La Résistance. ■