Ode ao anjo pornográfico
Peças, debates e mostra de filmes estão entre os eventos que festejam o centenário de nascimento do dramaturgo Nelson Rodrigues
Se ainda estivesse entre nós, Nelson Rodrigues, por muitos considerado o mais importante dramaturgo brasileiro, completaria 100 anos no próximo dia 23. Para festejar essa data redonda, a cidade onde morou durante a maior parte de sua vida ? ele é do Recife, mas chegou ao Rio aos 4 anos ? vem fazendo de agosto um mês especial, todo ele dedicado à sua obra. Principalmente nos palcos, mas também em exposições, nas telas do cinema e em mesas-redondas, vive-se o universo rodriguiano como jamais aconteceu antes, tal é a concentração de eventos em sua homenagem espalhados pelo Rio (veja o quadro na pág. 18).
O carro-chefe das comemorações se chama A Gosto de Nelson, festival organizado por Cristiane Rodrigues, uma de suas netas, conhecida como Crica. Trata-se de um tour de force que reúne, pela primeira vez na história, montagens simultâneas de todas as dezessete peças que escreveu. Além de grupos cariocas, participam da empreitada companhias vindas de outros onze estados, com encenações sendo realizadas nos teatros Glauce Rocha e Dulcina, ambos no Centro. Ainda naquela área (em salas da Caixa Cultural) exibem-se filmes inspirados em textos do autor, dentro da mostra Provocando o Cinema Brasileiro. E até nas prateleiras há novidades, como o relançamento do DVD A Vida Como Ela É, série exibida na TV entre 1996 e 1997, no programa Fantástico, que reaparece agora com capa comemorativa e novos extras, uma edição também ancorada no centenário. São quarenta contos, regados a maridos traídos (e traidores), ninfetas sensuais e mulheres insaciáveis, personagens que ajudaram a fazer, para o bem ou para o mal, a fama de Nelson – comumente adjetivado com as mais variadas, e às vezes contraditórias, palavras: tarado, gênio, reacionário, revolucionário, só para citar algumas.
Ruy Castro, autor da consagrada biografia O Anjo Pornográfico, de 1992, diz que os tipos criados pelo dramaturgo entre os anos 40 e 70 ainda podem ser vistos vagando por nossas esquinas. “Os personagens de Shakespeare não morreram no século XVI. Do mesmo modo, os de Ibsen e Strindberg foram muito além de 1900. As figuras de Nelson também permanecem eternas e, aliás, são melhores e mais complexas que essas protagonistas de novelas”, afirma o escritor.
O diretor Paulo de Moraes, do grupo Armazém (em cartaz com Toda Nudez Será Castigada), destaca que, para além dos ricos personagens, a mágica da dramaturgia rodriguiana vem a reboque de outros fatores, como a permanente oscilação entre o cômico e o trágico: “O tempero de seus textos é primoroso, porque, por mais sombrio o efeito que causem, neles um humor cínico também está sempre presente, dando relevo especial à ação”. Outro jovem encenador engajado nos festejos, Daniel Herz (que vem apresentando, com os Atores de Laura, a experimentação Decote), acrescenta outros contornos aos elogios: “Assim como Guimarães Rosa reinventou a linguagem de nossa literatura, Nelson reinventou uma linguagem para o teatro brasileiro”.
Está-se falando, principalmente, de Vestido de Noiva, sua segunda peça, que estreou no Theatro Municipal em 28 de dezembro de 1943. Foi ali que Nelson Rodrigues mostrou a que veio. Dirigido por Zbigniew Ziembinski e contando com cenários de Tomás Santa Rosa, o texto previa que a ação dramática fosse desenvolvida em três planos – o da realidade, o da memória e o da alucinação. Ninguém tinha visto algo parecido. Naturalmente, daí vieram muitos aplausos, mas também vaias e polêmica.
Impulsionado pela repercussão de Vestido de Noiva, Nelson escreveria outras peças da forte teor psicológico, como Valsa Número Seis e Viúva Porém Honesta, essa última um de seus raros textos cômicos. De sua verve surgiria ainda o gênero que se convencionou chamar de “tragédias cariocas”, entre elas Os Sete Gatinhos, O Beijo no Asfalto e Boca de Ouro. Nesse recorte da obra ficam explícitas sua forte ligação com a cidade e a grande percepção que tinha da vida cotidiana. Parece mesmo que ele foi feito para viver aqui, e que no Rio estavam desde sempre as pessoas que gostaria de retratar na ficção. “O carioca é um ser legitimamente rodriguiano, na malícia e na rapidez com que pega alguma coisa no ar e a devolve de forma criativa e engraçada”, comenta Ruy Castro.
O teatrólogo era frequentador assíduo do Maracanã, quase sempre na função de cronista esportivo. Sua família se estabeleceu inicialmente na Zona Norte, na Aldeia Campista, bairro hoje engolido pelo conceito de Grande Tijuca. Depois que fez sucesso como dramaturgo, Nelson comprou apartamentos em Copacabana e no Leme. Viveu intensamente o Rio de sua época. Trabalhou em jornais como Crítica e O Globo, teve várias mulheres (Elza, ainda viva, com 94 anos, foi a única oficial) e desses relacionamentos nasceram seis filhos, alguns reconhecidos após exames de DNA. Do casamento mais duradouro nasceram Jofre, cineasta morto em 2010, e Nelsinho, cabeça do evento A Gosto de Nelson, ao lado da filha Crica.
Nelson Rodrigues faleceu aos 68 anos, num domingo, 21 de dezembro de 1980. Meses antes, numa de suas últimas entrevistas na TV, o “anjo pornográfico” refletiu sobre a morte: “A posteridade em nada me interessa. Não ligo para o que vão dizer de mim no futuro. Se eu tiver de ser esquecido, e creio que serei, digo apenas que o morto esquecido é o único que realmente descansa em paz”. De fato não foi esquecido, como se constata pelas inúmeras comemorações de seu centenário. Mas o que o gênio acharia de tanto rapapé? Talvez gostasse, talvez não. Certo é que não deixaria de sacar da cachola uma ótima frase sobre a festa ? e provavelmente sarcástica.