S.O.S Centro: o que pode ser feito para revitalizar a região histórica?
O espaço que deu origem à cidade sucumbiu à Covid-19, mas planos para recuperá-lo podem indicar os rumos da retomada carioca
Portas de aço dominam a paisagem. Arriadas por tempo indefinido, sustentando cartazes de “Aluga-se” ou “Vende-se”, simbolizam o impacto particularmente penoso da crise no Centro, o coração do Rio. A região já não vivia seu melhor momento, degradada por uma combinação de desordem urbana com solavancos econômicos, mas os efeitos da pandemia foram ainda mais arrasadores.
No comércio local, em 2020, o tombo nas vendas girou em torno de 30%, comparado ao ano anterior. Ao longo dos últimos doze meses, pelo menos 40% dos bares e restaurantes fecharam as portas em definitivo ali e a vacância na ocupação de imóveis comerciais saltou. A saída desse atoleiro — depois da vacina, é claro — inspirou o Reviver Centro, projeto da prefeitura balizado por consultas públicas que mira a recuperação social, financeira e urbanística de uma área de 5,72 quilômetros quadrados e enorme relevância para a cidade. Em estágio inicial, já atraiu o interesse de empresários e cidadãos em geral — pode ser um começo para superar esse duro capítulo.
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Em poucas palavras, o plano gestado na Secretaria Municipal de Planejamento Urbano busca levar mais gente para morar na região central, há anos definida quase exclusivamente como um polo de trabalho e negócios. O naco do Rio em foco, o da 2ª Região Administrativa, compreende os bairros do Centro e da Lapa, mas ainda alcança Gamboa, Santo Cristo e Saúde, na região portuária. “A utilização mais intensa de um espaço faz com que a roda gire, impostos sejam recolhidos, pessoas cheguem, há um movimento”, defende o secretário de Planejamento Urbano, Washington Fajardo.
A minuta do Projeto de Lei Complementar, que precisa ser submetido à Câmara Municipal, lista, entre outras medidas, a conversão de prédios comerciais antigos em edifícios residenciais ou mistos, essa uma tendência global. Para atrair interessados, estão previstos benefícios como isenção de dívida ativa, IPTU ou ISS, apoio à preservação de bens históricos e diminuição da criação de vagas de garagem — determinação legal que costuma encarecer empreitadas como essa.
Além do necessário aceno às construtoras, a minuta do projeto de lei permite a criação de lojas no térreo dos edifícios de uso misto, para incentivar a movimentação nas calçadas, anuncia um programa de locação social, voltado a estudantes universitários e servidores públicos com renda de até seis salários mínimos, e estimula a construção de “terraços cariocas”, espaços de lazer coletivo no topo dos imóveis. “Você vê a Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, a paisagem do Centro é a das pinturas de Debret”, apregoa o entusiasta Fajardo.
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Como parte da elaboração do projeto, o secretário morou por uma semana em um apartamento no Largo da Carioca. Ele ressalta que foi uma experiência breve, mas guardou impressões importantes. “Fiquei de frente para o Largo da Carioca, aquela imensidão com o Convento de Santo Antônio no alto, um visual fascinante”, conta. “Não fez calor à noite, apesar de eu ter passado dias quentes de verão por lá, e havia a proximidade do metrô, a metros do apartamento”, lembra. Por outro lado, uma caminhada um pouco mais longa até o mercado, pela Avenida Chile, à noite, não deixou boa sensação. “Mesmo com controle visual da área e boa iluminação, eu, ali sozinho, fiquei morrendo de medo.”
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Com 3 648 participantes, a segunda de três enquetes on-line feitas durante a confecção do Reviver Centro revelou que, de acordo com 18,9% dos entrevistados, a falta de segurança seria o motivo mais relevante para não morar no Centro. Na mesma pesquisa, 33,24% ainda consideram o reordenamento do comércio ambulante nas ruas uma ação prioritária. “Falta de segurança e camelôs não são de hoje, mas, com tantos trabalhadores agora em home office, a coisa tornou-se ainda mais crítica”, resume Aldo Gonçalves, presidente do Sindicato dos Lojistas do Comércio do Rio de Janeiro e do Clube de Diretores Lojistas, entidades que, juntas, representam mais de 30 000 estabelecimentos. “O Centro foi um dos bairros que chegaram à pandemia mais fragilizados”, faz eco Fernando Blower, presidente do sindicato carioca dos bares e restaurantes, o SindRio.
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O fechamento em série de redutos importantes da cidade, como a Casa Villarino ou os restaurantes Mosteiro e Sentaí, e tantos outros brigando pela sobrevivência, como o tradicionalíssimo Bar Luiz, só fizeram aumentar a comoção. “A gente fala sempre de negócios, mas é preciso enfatizar também a perda de patrimônio cultural”, diz Blower, que enxerga luz no fim do túnel: “Voltar a ocupar o Centro como espaço de trabalho, entretenimento e moradia pode ajudar a restituir o orgulho carioca”.
Paradoxalmente, o cartão-postal que anda desbotado tem lá seu lado ensolarado: é dotado de vias asfaltadas, saneamento e sistema de transporte público de dar inveja — reúne VLT, BRT, ônibus, metrô, barca, aeroporto e rodoviária. “O Centro está perto de tudo e o gasto público já foi feito, está pronto, ao contrário da Zona Oeste, por exemplo”, avalia Cláudio Hermolin, presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário do Rio (Ademi-RJ). Na direção do renascimento desse pedaço tão rico em história e cultura, já há dois empreendimentos no horizonte: o Residencial Skylux (Tegra Incorporadora), com vista para a Baía, 324 unidades e 33 andares, e um lançamento da Construtora Cury, previsto para maio na região portuária — três edifícios de dezenove andares serão erguidos.
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Perto dali, o Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), responsável pela administração do Museu do Amanhã, amplia sua atuação no Porto. A Organização Social está tocando a restauração do sítio histórico do Cais do Valongo e negocia a instalação na área de uma escola de games e animação em parceria com a Miami Animation & Gaming International Complex (Magic), que, sediada na Flórida, pertence a um dos maiores grupos privados de educação dos Estados Unidos. “Já trabalhamos juntos em produções do Museu do Amanhã”, conta Ricardo Piquet, diretor-presidente do IDG. “Tínhamos convite para fazer o projeto em São Paulo, mas encontramos boas condições para desenvolvê-lo no Rio”, diz.
A meta, para quando a pandemia deixar, é chegar a 1 000 alunos. Outros projetos para o Centro e arredores aguardam o momento oportuno de sair do papel. Na Invest Rio, agência de promoção e atração de investimentos da prefeitura, vêm sendo gestadas iniciativas como a do Porto Maravalley, que, em linhas gerais, quer levar à região portuária, onde já estão alguns dos principais e mais modernos museus da cidade, o primeiro de uma série de distritos cariocas de tecnologia e inovação.
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Exemplos assimilados mundo afora não faltam a Washington Fajardo, arquiteto e urbanista que, na gestão anterior do prefeito Eduardo Paes, comandou o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade. “A partir dos anos 60, a Europa fez esse trabalho de reocupar suas áreas centrais, dando ênfase a soluções habitacionais e à qualidade do espaço público”, relata.
Ele chama atenção, ainda, para a Autoridade Pública de Habitação Social de Nova York, fundada nos anos 30 e, desde o início, dedicada a ações de locação social como a que se pretende implantar no Rio, com o projeto Reviver Centro. Também centros de metrópoles da América Latina, como Buenos Aires e Lima, têm sido bem cuidados. “Essas sociedades já sabem que a área central é a roupa com a qual você se apresenta”, sintetiza o secretário. Depois da vacina, e de um planejamento urbano que concilie vidas com economia, vamos descobrir com que roupa (e para onde) irá o Centro carioca.
Nada de saideira
Símbolo da tradição no Centro, o centenário Bar Luiz quase fechou em 2019, foi salvo por uma onda de solidariedade e agora pena para sobreviver
Rosana Santos administra o Bar Luiz há 37 anos. Em setembro de 2019, entregou os pontos e anunciou o encerramento das atividades do ponto histórico na Rua da Carioca, 39. A notícia nas redes sociais provocou uma onda de solidariedade, encabeçada por colegas ilustres como a chef Roberta Sudbrack, e resultou em casa cheia mais uma vez. “O Rio abraçou o Bar Luiz de uma forma tão bonita que, embora estivesse certa da minha decisão, decidi receber esse carinho. A clientela realmente voltou, no fim do ano começamos a planejar o futuro e aí, logo em seguida, veio a pandemia”, conta a proprietária.
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No ano passado, a casa inaugurada em 1887, no tempo do imperador dom Pedro II, ficou de portas fechadas de março a julho. Num ensaio de retomada, o cardápio foi reduzido aos clássicos: a “linha alemã”, com sugestões como salsichão, salada de batata, croquete, bife à milanesa, eisben e kassler. O time de doze funcionários foi caindo, até os cinco atuais, assim como o horário, das 11h30 às 16h.
No último 18 de março, uma quinta-feira, dias antes do anúncio de um novo fechamento geral dos salões por razões sanitárias, a casa recebeu apenas um cliente no almoço — ele pediu milanesa com salada de batata. Rosana Santos já passou por outras situações difíceis, como a ameaça de despejo do ponto ocupado pelo Bar Luiz desde 1927. “O restaurante reflete o que está acontecendo lá fora, vai bem quando o entorno está bem”, ensina.
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Em reuniões virtuais e grupos de WhatsApp, ela hoje discute soluções para o Centro com colegas do Polo Novo Rio Antigo e integrantes do Sebrae, além de representantes de entidades de engenharia e arquitetura e gestores públicos. “Eu luto, sou insistente, mas não sei como isso vai terminar. Meu sofrimento é o do cliente, do prefeito, do governador, dos comerciantes em geral, e a primeira preocupação é com a vida, é sobreviver.”