O filme é curto, dura apenas um minuto e seis segundos. A câmera postada exatamente atrás de um policial armado com fuzil enquadra dois outros soldados agachados alguns metros à frente, com um terreno baldio ao fundo. De repente, três tiros e vozes. “É vagabundo, ele está armado. Cuidado”, alerta o homem que opera o equipamento. “Você está vendo ele?”, pergunta a seu lado o repórter, em tom nervoso. “Está entre os dois postes. Bota a cabeça e tira. Está encurralado, só bota a cabeça e tira”, responde calmamente o outro. Mais disparos. Ao todo serão catorze. No 13º é possível distinguir um palavrão e, em seguida, um grito de dor. A câmera, que continua filmando, cai no chão até congelar a imagem em um pedaço de compensado largado sobre a terra batida. Um projétil saído de um fuzil atravessou o colete à prova de balas e atingiu em cheio o peito do cinegrafista Gelson Domingos, 46 anos, que cobria o confronto ao lado do colega Ernani Alves, ambos da Rede Bandeirantes. Às 7h40 da manhã de domingo, já sem vida, a vítima deu entrada na Unidade de Pronto Atendimento de Cesarão, no bairro de Santa Cruz. As últimas imagens que captou retratam o confronto entre homens do Batalhão de Choque e traficantes da favela Antares, na Zona Oeste da cidade. De forma melancólica, o registro entra para a história. Ao tombar no meio da rua, Domingos tornou-se o primeiro jornalista a morrer na guerra travada pelas forças de segurança do estado contra a bandidagem.
Lamentável pelas circunstâncias, a tragédia lança luz sobre um grupo de profissionais que tem participado ativamente das incursões policiais nas áreas mais violentas da cidade. A cada invasão de territórios dominados por traficantes, milicianos e todo tipo de criminoso, um séquito de repórteres de jornais e emissoras de rádio e TV acompanha o avanço dos Caveirões e das tropas armadas pelas vielas. Trata-se de um trabalho arriscadíssimo, especialmente para aqueles que, como fazia Domingos, registram imagens do front urbano. Afinal, não há outra maneira de conseguir flagrantes de cada uma dessas ações, a não ser acompanhando-as de perto. Não fosse a coragem desses profissionais, cenas espetaculares como as dos blindados da Marinha ocupando os morros do Complexo do Alemão e da população saudando os recém-chegados jamais teriam ido a público. Da mesma forma, o arsenal de lentes permanentemente focadas em cada passo dos policiais traz registros como o da prisão do traficante Antonio Bonfim Lopes, o Nem, ocorrida na última quinta (10).
Contratado da agência internacional Reuters, o fotógrafo paulistano Paulo Whitaker viveu a experiência mais aterrorizante de sua vida justamente na invasão do Complexo do Alemão. Vestido com um colete blindado recheado de placas de cerâmica de alta resistência, capaz de suportar tiros de fuzil, ele realizava seu trabalho de documentar a operação. O equipamento de proteção, que inclui um capacete especial, é o mesmo utilizado pelos profissionais que atuam em zonas de guerra e pouco comum no Brasil. Whitaker já estava no carro da reportagem, pronto para ir embora, quando ouviu estampidos e gritos de socorro. Pulou do automóvel com sua câmera na mão para fotografar um morador baleado. Segundos depois, sentiu uma estranha umidade no ombro. Reparou que seu braço estava melado de sangue. “Fui atingido ainda dentro do carro. Eu não tinha percebido nada. Coloquei então a mão no ferimento e tirei um pedaço da bala”, conta. O assassinato do colega da Band levou-o a desistir de um projeto antigo: registrar a ocupação da Rocinha, que estava marcada para este domingo (13). “Para mim, chega. Senti um arrepio quando soube. Poderia ter acontecido comigo.”
Pelo número de soldados envolvidos e pelo tamanho da operação, a ocupação do Alemão foi, de fato, o momento em que a cobertura jornalística mais se aproximou da de uma zona de guerra. Há 26 anos na agência France Press, o fotógrafo Antonio Scorza passou 72 dias no Iraque em pleno embate entre as tropas americanas e os insurgentes locais, mas foi no acesso da Vila Cruzeiro que ele viveu seu momento de maior tensão. Scorza e mais três colegas passaram vinte minutos encurralados atrás de um muro, enquanto tiros de fuzil estouravam a calçada a 1 metro de distância. Só conseguiram escapar quando um carro de assalto da polícia se aproximou. “Vivemos situações de altíssimo risco. Procuro sempre não andar perto de muitas pessoas e não vestir roupas parecidas com as militares. Além, é claro, de usar o melhor equipamento de segurança”, recomenda (veja o quadro na pág. ao lado). Também foi no conglomerado de favelas da Zona Norte que Sergio Moraes, da Reuters, experimentou sensações diversas que mesclavam o pânico de ser ferido com o êxtase de obter imagens incríveis. Em meio à saraivada de balas, ele conseguiu chegar a uma ruela onde havia um grupo de traficantes. Para ter um ângulo melhor, correu até uma caixa-d?água que estava virada no meio da rua. E foi de lá que fez fotos espetaculares, que mostram os bandidos desfilando com suas armas e apontando para ele. “Todo mundo vive um paradoxo em trabalhos dessa natureza”, explica Moraes. “Ao mesmo tempo em que queremos nos proteger, temos a sensação de que, ao evitar o risco, perderemos as melhores fotos.”
Apesar de serem movidos pela adrenalina e pela contínua busca da melhor imagem, que sintetize a melhor história, os jornalistas que entram nas favelas cariocas não são aventureiros ou malucos ? nem obrigados pelas empresas a fazer o que fazem. Dadas as peculiaridades do ambiente onde trabalham, sabem como se comportar em situações de risco e costumam frequentar cursos e treinamentos promovidos por organizações internacionais. Na prática, recebem a mesma orientação de alguém que vai para países conflagrados. Além de simulações de sequestro, têm aulas sobre movimentação durante um tiroteio, localização de abrigos seguros, primeiros socorros e armamentos. Um dos fotógrafos com maior experiência nesse tipo de cobertura é Domingos Peixoto, do jornal O Globo. Recentemente, ele usou seus conhecimentos de balística para conseguir a foto de que mais gosta. Durante um confronto no Morro dos Macacos, na Zona Norte, ele avistou um traficante apontando uma pistola em sua direção, distante algumas centenas de metros. “Sei que um disparo de fuzil pode acertar um alvo a quase 2 quilômetros. Mas a arma dele era menor e não tinha alcance”, explica. Resultado: o disparador de sua Canon EOS 50D foi mais eficaz do que a pistola 9 milímetros do bandido. “Quem vê a foto acha que sou maluco, que estou sendo alvejado, mas eu tinha plena consciência de que não havia risco.”
Em quase três décadas de embates nas favelas, a relação entre os jornalistas e a bandidagem foi se deteriorando. Até meados dos anos 1990, repórteres, fotógrafos e equipes de televisão circulavam pelos morros com naturalidade, sem proteção especial, com o beneplácito dos chefões. Os bandidos falavam com frequência à imprensa, tentando justificar seus crimes e passar uma imagem de injustiçados e defensores dos oprimidos. Alguns chegavam ao disparate de convocar entrevistas coletivas, como se fossem autoridades ou artistas. Foi o que fez certa vez Zacarias Gonçalves Rosa Neto, o Zaca, antigo mandachuva do Dona Marta. O filme Cidade de Deus retratou essa relação ao exibir nos créditos finais uma entrevista concedida ao Jornal Nacional pelo traficante Manuel Machado Rocha, vulgo Mané Galinha, durante a guerra pelo controle do comércio de drogas nos anos 1970. Enriquecidos pelos lucros fabulosos com a venda de cocaína e denunciados pela imprensa por sua crueldade, os líderes do crime organizado mudaram de postura. O auge dessa inflexão aconteceu em 2002, com o brutal assassinato do repórter Tim Lopes, da TV Globo. Ali ocorreu a ruptura definitiva entre o tráfico e a imprensa. Repórteres passaram a ser considerados inimigos e chamados de X-9, designação dada aos alcaguetes pelos marginais. Os veículos de comunicação começaram a proibir seus profissionais de subir os morros sem a presença da polícia.
Não são apenas situações de conflito aberto que oferecem riscos aos jornalistas. Coberturas mais simples também requerem boa dose de sangue-frio e audácia. Em 2009, o fotógrafo Wilton Junior, da sucursal carioca do jornal O Estado de S. Paulo, foi ao Morro de São Carlos, no Estácio, para registrar um protesto dos moradores contra a suposta execução de uma criança por policiais. Quando sacou sua máquina, tomou socos e pontapés dos criminosos e seu equipamento foi roubado. Levado para um barraco, permaneceu como refém dos traficantes durante cerca de três horas. “Foi uma situação muito tensa, passei horas argumentando que estava fazendo um bem para eles, denunciando um abuso de autoridade. No fim, eles acabaram me soltando”, lembra Junior. Após ser libertado, ele ainda teve frieza suficiente para fotografar o cadáver da criança.
Assim como outros profissionais que atuam em situações-limite, repórteres policiais costumam desenvolver uma espécie de carapaça emocional para enfrentar uma rotina de trabalho marcada por riscos e violência. “A gente endurece mesmo. Se nos sensibilizarmos facilmente, não conseguiremos fazer nada”, diz Cláudia Mônica Moraes, produtora da TV Record. Há sete anos, ao entrar no Morro do Dendê, junto com um grupo de policiais civis, ela se viu sob o fogo de traficantes por mais de duas horas. A situação só se resolveu com a chegada de reforços do Bope, que resgatou a equipe. No ano passado, Cláudia subiu a Rocinha acompanhada apenas de um advogado para entrevistar o criminoso Nem, agora atrás das grades. “Ele me disse que tem medo de jornalistas”, conta.
Nos últimos cinco anos, morreram no Rio nada menos que 5?462 pessoas nos confrontos entre a polícia e os bandidos, o que dá uma impressionante média de três por dia. A morte do cinegrafista Gelson Domingos, porém, não é apenas um número para engordar uma estatística. Como nunca havia acontecido antes, o episódio terá consequências. Preocupada com mais baixas, a Secretaria de Segurança Pública estuda restringir o acesso da imprensa às operações. Do outro lado, os veículos de comunicação avaliam medidas para proporcionar ainda mais proteção aos profissionais. Como se pode ver, o medo aumentou. Mas, seja na Rocinha, seja em qualquer outro morro do Rio, cinegrafistas, repórteres e jornalistas estão sempre lá para trazer as imagens dessa importante guerra. É a sua missão.
Como jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas costumam se proteger durante confrontos em favelas
Uniforme
Um item de segurança é essencial: colete à prova de balas. É importante, no entanto, ter um equipamento adequado à necessidade. A maioria dos modelos disponíveis no país protege contra disparos de pequeno calibre. No exterior usa-se uma versão com placas de cerâmica, que suporta tiros de fuzil.
Posicionamento
Os profissionais experientes sabem onde se colocar em meio a confrontos, sempre buscando lugares protegidos, junto a postes e paredes. Ficar ao lado das equipes policiais é reconhecidamente uma situação de risco.
Cor da roupa
No Rio, os fotógrafos não usam peças escuras, principalmente pretas, para não ser confundidos com os homens da polícia.
Câmera
Em um confronto, objetivas e câmeras volumosas podem ser confundidas com armas. Para diminuírem os riscos, os fotógrafos não penduram o equipamento no ombro e usam filtros que reduzem os reflexos provocados pelas lentes.
Estudo
Quem costuma cobrir enfrentamentos normalmente conhece as armas até pelo som dos tiros. Sabe, portanto, que uma bala de fuzil pode percorrer quase 2?000 metros. Isso é importante para buscar o tipo de abrigo mais apropriado a cada situação.
Individualismo
Aglomerações costumam ser alvos mais fáceis. Por isso, os profissionais procuram atuar sozinhos, o que reduz o risco de ser alvejados e facilita a procura de um abrigo.
Retirada
Antes de uma cobertura importante, os jornalistas especializados sempre avaliam uma rota de fuga para eventuais emergências. E deixam seus motoristas de prontidão, em um local de fácil acesso, para uma saída mais rápida.