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Com chafariz que virou casa, Rio tem 192 bens históricos em risco

Levantamento identificou estátuas, fazendas e outros locais abandonados, destruídos ou com perigo de desabamento

Por Saulo Pereira Guimarães
Atualizado em 21 abr 2018, 07h30 - Publicado em 21 abr 2018, 07h30
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  • Josefa Rosa de Jesus mora em uma casa com sala e dois quartos no Catumbi. O imóvel tem relógio da Light na porta e contas pagas em dia, além de espaço suficiente para a aposentada e seus dois cachorros. Seriam detalhes à toa, exceto por uma particularidade. O endereço é, na verdade, parte de uma relíquia. A antiga construção, erguida no século XVIII, é assinada por Mestre Valentim, pioneiro nome das artes no Brasil colonial, e, desde 1938, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Batizado de Chafariz do Lagarto, por causa do réptil de ferro na fachada que outrora cuspia água, o local já estava abandonado quando a nova moradora chegou, em 2010. “Uma vez encontrei um cara com um martelo na mão, prestes a roubá-lo”, conta a senhora sergipana, há mais de cinquenta anos no Rio. A transformação de um tesouro arquitetônico no humilde lar de dona Jô, como é mais conhecida a ex-moradora de rua, é algo, no mínimo, descabido. É, também, a ponta de um problema bem maior. Um levantamento do grupo SOS Patrimônio, realizado no estado entre janeiro e março de 2018, identificou 192 bens históricos abandonados, destruídos ou sob o risco de desabar. Nessa lista estão o próprio Chafariz do Lagarto e seu vizinho, o Chafariz Paulo Fernandes. A 120 metros da residência de dona Jô, a torre, com mais de 200 anos de existência, também foi invadida e redecorada — sua área interna abriga cômodos alugados a 300 reais por mês.

    A pesquisa do SOS Patrimônio reuniu 600 especialistas. Junto das fotos dos bens, eles compartilharam a localização indicada pelo GPS do celular no momento do clique, o que garante a autenticidade dos registros. Estátuas, igrejas e casarões estão ameaçados pelas mais diversas razões. Muitas vezes, mendigos arrancam peças dos monumentos para revendê-las. Foi assim com os fios de cobre da Fazenda Capão do Bispo, em Del Castilho, levados em fevereiro. Entre os locais que sofrem com o descaso das autoridades está a Fazenda Machadinha, em Quissamã. Lá, uma parede caiu há um ano e não foi refeita. “Até a casa do barão de Vassouras, uma das sedes do Iphan no estado, encontra-se aos pedaços”, afirma o historiador Claudio Mello, integrante do grupo de estudiosos. Na Zona Sul, o Relógio da Glória marca 13h50 há um ano, mas, como se sabe, o tempo não para. A murada em seu entorno, erguida pelo prefeito Pereira Passos em 1906, exibe 207 marcas de pichação. Na Praça Tiradentes, a vítima é a primeira escultura pública do Brasil: uma das lanças dos índios que protegem a estátua equestre de dom Pedro I foi roubada há mais de quatro anos. “Cheguei a vê-la em um antiquário da Rua do Senado”, conta o restaurador Marconi Andrade, fundador do SOS Patrimônio. Ao tentar resgatá-la, ele soube que a peça havia sido vendida a um colecionador de São Paulo. Para complicar, o orçamento estadual encolheu. A previsão de gastos públicos com patrimônio cultural diminuiu de 20,3 milhões de reais, entre 2012 e 2015, para 14,8 milhões, de 2016 a 2019.

    Ao redor do mundo, monumentos são testemunho da história. Muitas vezes, servem, inclusive, para revisá-la. Foi o que aconteceu em Barcelona, onde, em março, a prefeitura removeu uma estátua dedicada ao traficante de escravos Antonio López. No Rio, o grande desafio é apostar no oposto: despertar a simpatia da população por peças importantes e, assim, estimular a sua preservação. Quanto mais os moradores entenderem o significado dos nossos monumentos, mais chances teremos de mantê-los inteiros. “O Rio é a cidade com maior número de monumentos da América Latina. Não há condições de ter um guarda em cada estátua”, diz Washington Fajardo, urbanista e e­­x-presidente do Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural. Uma política de longo prazo e uma administração livre da influência do mercado imobiliário, entre outros atores interessados nos rumos do nosso patrimônio, são objetivos a atingir. “Sem isso, vamos sempre depender do ministro para frear o Geddel”, resume o arquiteto e historiador Nireu Cavalcanti, em referência ao caso do ex-ministro da Cultura Marcelo Calero, que pediu demissão após sofrer pressões para liberar a construção de um prédio em uma área tombada de Salvador. ß

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