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Como fazer uma faxina

A experiência colombiana de combate à corrupção policial é um exemplo e tanto de que é possível reduzir essa praga, a maior chaga das forças da lei no Rio

Por Caio Barreto Briso, de Bogotá
Atualizado em 5 jun 2017, 14h48 - Publicado em 14 out 2011, 17h37
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seguranca06.jpg ( Tomás Rangel/)
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É inegável que o Rio de Janeiro realizou avanços importantíssimos na área de segurança nos últimos anos. A retomada de regiões inteiras da cidade das mãos dos traficantes de drogas foi um exemplo palpável de progresso. A queda dos principais índices de criminalidade também. Por isso mesmo, as recentes notícias sobre o envolvimento de onze policiais militares ? incluindo um chefe de batalhão ? no assassinato da juíza Patrícia Acioli chocaram a população. Antes esperançosas com as conquistas, as pessoas agora estão atônitas e se perguntam se a euforia anterior não passou de mera ilusão. Pois quem acreditou que todos os problemas estavam resolvidos porque algumas favelas foram pacificadas de fato se enganou. Nenhuma guerra contra o crime organizado será bem-sucedida se aqueles que deveriam proteger a lei estiverem, repetidas vezes, à margem dela. E a realidade cruel é que temos hoje uma das polícias mais corruptas do Brasil. Embora gravíssima e de difícil solução, tal situação pode melhorar de forma significativa. Outras cidades e países, em diferentes momentos de sua história, enfrentaram o mesmo desafio e saíram vitoriosos. De todos eles, o caso mais parecido com o nosso, pelo grau de depravação das corporações e pela proximidade cultural, é o da Colômbia. VEJA RIO foi até lá conhecer a experiência, um modelo que pode ser seguido aqui. “O segredo é tornar a luta contra o crime a prioridade número 1 do governo”, afirma Hugo Acero, consultor das Nações Unidas e ex-secretário de Segurança de Bogotá, a outrora perigosa capital colombiana.

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seguranca01.jpg (Leo Feltan/Divulgação)

Como todas as políticas públicas bem executadas, a fórmula de nossos vizinhos baseou-se em princípios muito simples. Diante do descalabro total, com boa parte da instituição policial dando a impressão de que estava na folha salarial do megatraficante Pablo Escobar, morto em 1993, era preciso começar de novo. A primeira atitude foi a criação de um órgão externo à corporação, com amplos poderes de fiscalização. Semelhante ao Ministério Público e composta de jovens advogados, a Fiscalía General de la Nación atua de forma implacável na perseguição aos desvios cometidos pelas forças de segurança. Desde sua criação, em 1991, foram expulsos da Polícia Nacional nada menos que 20?000 homens, mais de 20% do efetivo atual. Seu trabalho foi facilitado com a aprovação de uma lei, no mesmo ano da morte de Escobar, que agilizou sobremaneira os processos de ejeção dos criminosos. No Rio, um procedimento como esse pode demorar até dois anos. Na Colômbia, apenas alguns dias. Em paralelo, realizou-se uma reestruturação completa da carreira. Logo na largada, os integrantes da tropa receberam um aumento de 30%, acrescido de um plano de promoções por metas alcançadas e bônus em caso de sucesso. A ideia era atrair perfis diferentes, incentivando a entrada de mulheres (atualmente elas representam 8% do contingente) e abrindo as portas para pessoas com diplomas em diversas especialidades. Hoje, mais da metade dos policiais de Bogotá possui nível superior. Há dezoito anos, o índice não passava de 10%. Aqui não temos sequer essa estatística. “O objetivo é que em 2014 todos falem inglês”, conta o major Domingo Lopez, ele mesmo formado em agronomia e gestão pública.

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seguranca05.jpg (Leo Feltan/Divulgação)
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O soldado médio da Polícia Nacional ? lá ela é unificada, com hierarquia militar, não existindo a polícia civil ? hoje é um profissional como Nelson Eduardo Jimenez, de 34 anos. Formado em administração de empresas, ele mora em uma casa confortável de quatro quartos, comprada graças a um longo financiamento, com aparelhos domésticos novos e um carro do ano na garagem. Seus familiares têm direito a se tratar no hospital da corporação, entre os melhores de Bogotá, e sua filha Mariana, de 3 anos, poderá estudar no colégio criado para os herdeiros de oficiais e militares. Nos fins de semana, a família frequenta um clube esportivo da classe ? sem falar nas férias, quando eles têm a opção de viajar para hotéis exclusivos espalhados pelo país. Professor de defesa pessoal na Escola de Cadetes General Santander, a principal formadora de agentes da Colômbia, Jimenez foi promovido recentemente e já mira uma nova ascensão, daqui a dois anos, pois mantém seu índice ? usado para avaliar o desempenho da tropa ? sempre elevado. Funciona assim: cada integrante recebe 1?200 pontos em janeiro e precisa chegar a dezembro pelo menos com o mesmo número. Faltas e deslizes são subtraídos desse total, desempenhos positivos são adicionados. Quem chega a uma pontuação de 900 pode ser expulso. E os que ultrapassam os 1?500 se credenciam a promoções e cursos. “Ser policial aqui é mais do que uma profissão”, diz ele. “É um projeto de vida.”

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seguranca002.jpg (Leo Feltan/Divulgação)

Não existem indicadores precisos para medir o grau de corrupção de uma corporação. O alto número de expulsões, seguido por sua drástica diminuição, pode indicar tolerância zero com os infratores no primeiro momento e uma tropa mais higienizada nos anos seguintes. A melhora nos índices de criminalidade, especialmente depois de um período de descontrole, também costuma ser encarada como avanço não só da eficiência, mas da integridade dos policiais. Na Colômbia, as duas variáveis aconteceram nas últimas duas décadas (veja o quadro nas páginas 28 e 29). Mas o melhor termômetro para mensurar o impacto dessas mudanças foi a recuperação da imagem da Polícia Nacional junto à sociedade colombiana. Em 1993, a taxa de confiança da população nela era de apenas 17%. Hoje, esse número chega a 61%, um progresso notável em menos de duas décadas. “Mas essa é uma guerra sem fim. Qualquer descuido ou leniência com as fraudes pode levar rapidamente ao retrocesso”, adverte Alex Wong, diretor sênior do World Economic Forum e especialista no tema.

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[—FI—]

Como as pragas na lavoura ou a gordura no organismo, a corrupção policial se espalha rápido ? e cede terreno lentamente. No Rio, é difícil precisar como a situação chegou a este ponto, com a criação de bem lubrificados canais de arrecadação de dinheiro por parte da banda podre da segurança pública. Sabe-se, porém, que a idoneidade nunca foi a característica mais marcante de boa parte dela. Na verdade, ela já nasceu sob a égide da fraude e tinha na sua origem a missão de favorecer uma classe social, a corte. Quando foi criada por dom João, em 1808, recrutava os elementos mais baixos da sociedade, e suas mais diversas funções ? como fiscalizar obras ? eram um convite à bandalheira. A falta de ética foi tão grande que, em 1831, o regente Feijó acabou com a polícia. Dois meses depois nasceu uma nova tropa, com ampla substituição de oficiais. Como se vê, a limpeza não foi tão caprichada. Com o passar dos anos, pagar uma “cervejinha” ao guarda virou uma cena quase folclórica na cidade e as ligações com o jogo do bicho e o crime em geral ficaram cada vez mais intensas.

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seguranca04.jpg (Leo Feltan/Divulgação)
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Foi o poderio do tráfico de drogas, impulsionado a partir da década de 80, o grande divisor de águas na história da degradação da polícia. Com o aumento do consumo, o “arrego” (propina) ganhou escalas nunca alcançadas e a proximidade entre os grupos convenceu os desonestos de que o crime compensava, sim ? e muito. Curiosamente, a melhor narrativa dessa evolução deu-se no filme Tropa de Elite 2 ? O Inimigo Agora é Outro. Na trama, um major da PM observa o lucro dos bandidos do morro obtido com a distribuição de gás e outros serviços. Decide então tomar o lugar dos criminosos e tocar os diversos empreendimentos ele mesmo. É ficção, porém a obra do diretor José Padilha não está longe da realidade. Evidentemente, existem exceções, mas agentes da lei estão envolvidos hoje em todos os negócios ilegais praticados no estado. Da venda de armas e cocaína à máfia dos caça-níqueis. Das conexões irregulares de TV a cabo nas favelas à segurança de bicheiros. “As relações com o crime se aprofundaram à medida que os bandidos se organizaram e ficaram poderosos. Depois, os policiais passaram a copiar esses modelos”, diz o historiador Milton Teixeira.

[—FI—]

Se existe um consolo, é a certeza de que a cúpula da segurança pública sabe o que precisa ser feito. O secretário José Mariano Beltrame, que esteve em Bogotá com o governador Sérgio Cabral no início de 2007, tem uma visão muito clara sobre o problema e vem reafirmando a disposição de limpar a polícia. Uma de suas principais decisões nesse sentido, a ser implantada a partir de janeiro, é a reforma na grade curricular e na carga horária das academias de formação de militares e civis, de onde estão saindo mais de 500 homens por mês. Serão descartadas algumas disciplinas e acrescentadas novas, com ênfase em temas como direitos humanos e cidadania ? exatamente como na polícia colombiana. Os instrutores das escolas, hoje voluntários, passarão a receber 65 reais por hora de aula.

Além disso, estão sendo investidos 536 milhões de reais em tecnologia. As aquisições mais importantes são tablets 3G de bordo e câmeras que filmarão as viaturas por dentro e por fora. A localização exata dos automóveis e as gravações poderão ser acessadas ao vivo pelas corregedorias das corporações. Nem o uniforme será mais o mesmo. “Nossa polícia foi preparada para a guerra, mas agora precisamos mudar isso. É a hora de formarmos policiais cidadãos”, afirma o secretário, que também aposta no aperfeiçoamento das investigações, como ele fez na Polícia Federal. “Posso ser aplaudido ou vaiado. é o risco que corro. Mas, por favor, deixem-me fazer do meu jeito.” A faxina precisa ser grande. Felizmente, experiências como a colombiana mostram que é possível limpar, pelo menos, a parte mais grossa da sujeira.

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