Onze policiais baleados, 10?000 alunos sem aulas devido aos tiroteios, quatro ônibus incendiados e uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) destruída. Os acontecimentos do último mês mostram que a pacificação dos complexos da Penha e do Alemão atravessa seu momento mais delicado desde o início do processo, em 2010. Três anos e meio após ser reconquistado pelo Estado, o conjunto de favelas é alvo de ataques deflagrados por marginais, que tentam desestabilizar o projeto e, em última análise, recuperar o controle da região. A ampla extensão territorial daquele pedaço agrava os problemas. Dividido em quinze microrregiões, onde moram 100?000 pessoas, o conjunto estende-se por uma área equivalente a 300 campos de futebol. Os barracos alternam-se entre construções simples e unidades de até cinco andares, de onde é fácil espreitar a movimentação policial. Adicione-se aos perrengues a topografia irregular característica do local. “É uma região muito mais difícil de atuar que o Haiti”, compara o general Tomás Paiva, que fez parte da missão brasileira no país caribenho e esteve à frente da operação no Alemão em 2012. “Ao contrário do que ocorre aqui, o tráfico de drogas de lá é incipiente e não possui tantos meios para resistir.” Foi a disputa por territórios, algo inexistente na capital haitiana, que levou à escalada de armamentos pesados das facções cariocas. Para recordar, só nos primeiros dias de ocupação do Alemão foram recolhidos 170 fuzis.
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Situado entre a Avenida Brasil e as linhas Vermelha e Amarela, esse conjunto de favelas da Zona Norte é considerado estratégico para o tráfico. Ele tem quarenta acessos, que desembocam em movimentadas vias do subúrbio, facilitando o escoamento rápido de armas, drogas e indivíduos. Em razão dessa peculiaridade, por três décadas o Alemão funcionou como um dos principais entrepostos do narcotráfico carioca, ao lado da Rocinha e da favela da Maré, ambas também ocupadas pelas forças de segurança. “Essas três favelas formavam o que chamo de cidades-estado do tráfico”, diz Mário Sérgio Duarte, que foi comandante da Polícia Militar durante a invasão de 2010. “O erro se deu na demora a reagir. Desde os primeiros sinais do retorno de homens armados, deveriam ter aumentado o efetivo e intensificado o controle nos acessos”, diz ele.
Assentar-se numa região com um longevo histórico de conflagração e domínio dos bandidos é em si um desafio gigantesco, que envolve logística e inteligência. A missão, que já era complicada, ficou ainda mais complexa e arriscada com o restabelecimento dos antigos traficantes, que haviam sumido do mapa no início da ocupação (quem não se lembra da cena da fuga em massa flagrada por um helicóptero de TV e exibida ao vivo para todo o país?). Para piorar o quadro, os soldados designados para as UPPs tiveram formação com ênfase no policiamento comunitário, e não no enfrentamento em zonas de alto risco, o que, caso fosse necessário, ficaria a cargo dos agentes do Bope. Em face das ocorrências recentes, porém, desde março esses policiais da jovem guarda passaram a receber treinamento do Bope para aprender a lidar com situações extremas. “A grande questão é que a UPP foi concebida para ser um policiamento de proximidade. O criminoso acaba se tornando mais ousado ao saber do perfil desse novo agente”, avalia Paulo Storani, especialista em segurança pública e ex-capitão do Bope.
Com o avanço da política de pacificação, os desafios agora se estendem ao Complexo da Maré, ocupado desde abril pelo Exército. Além dos acessos terrestres, a favela possui saídas para a Baía de Guanabara, o que confere agilidade ainda maior aos bandidos. “Na Maré não há áreas elevadas, onde poderiam ser montados postos de observação idênticos aos do Alemão”, diz o coronel do Exército Carlos Alberto de Lima, autor do livro Os 583 Dias da Pacificação do Complexo da Penha e do Alemão. Regiões há muito abandonadas pelas autoridades, esses bairros precisam do resgate proporcionado pela ocupação permanente da polícia, mas não só. Falha até aqui, a política social, com investimentos em saneamento básico, saúde e infraestrutura, é motivo de frustração e ajuda a corroer a confiança no Estado. Enquanto participava da missão no Alemão, o general Tomás Paiva notou que era comum a falta de água. “Como política de aproximação, o Exército passou a fornecer carros-pipa”, lembra o militar. Se o Rio quer realmente extirpar o mal, é preciso não só resgatar o direito de ir e vir, mas também reinventar a dura realidade local.