Vistas por uma ala dos humanos como simpáticas e fofinhas, as capivaras se tornaram, de uns anos para cá, até personagens da bem-sucedida série animada japonesa Kapibarasan, concebida a partir de reproduções de bichinhos de pelúcia. Na vida real, porém, a convivência entre o carioca e esses mamíferos nem sempre vem se dando em bases tão pacíficas e amorosas, em especial nas redondezas da Lagoa Rodrigo de Freitas. Na primeira semana de março, os problemas vieram à tona quando o biólogo Mario Moscatelli denunciou a morte de mais uma delas, supostamente a pedradas. Chamada de Margarida, ela se mudara para lá há pouco mais de dois anos ao lado de seu par, Armando, com quem teve seis filhotes, que também morreram ou desapareceram. Restam ali apenas Armando e uma fêmea que chegou mais recentemente, Judith. A Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente investiga o caso.
Animal herbívoro e semiaquático nativo da América do Sul e maior roedor do planeta, podendo atingir 1,3 metro de comprimento e 60 centímetros de altura, a capivara (“comedor de capim”, em tupi-guarani) conta até com um dia reservado a ela — o 14 de setembro — e com um apelido carinhoso: capi. Já seu nome científico, Hydrochoerus hydrochaeris, significa porco d’água, dado que esses mamíferos preferem viver às margens de rios e lagos, áreas alagáveis e próximos a represas. A água serve como esconderijo e proteção contra os predadores naturais, além de ser utilizada para a reprodução. Seus detratores as acusam de transmissoras de febre maculosa. Não é bem assim. Na verdade, elas são hospedeiras do carrapato-estrela, inseto que se alimenta de sangue de animais de grande porte, como bois e cavalos, responsável pela transmissão da bactéria Rickettsia rickettsii, que causa a doença.
No Rio, desde sempre as capis são observadas em áreas como a Baixada de Jacarepaguá e, volta e meia, estendem seus passeios até cartões-postais da cidade como as praias do Arpoador e de São Conrado. Na Lagoa, segundo registros da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, que não possui dados sobre o tamanho de sua população, apareceram pela primeira vez em 2008, quando as condições ambientais da região começaram a dar sinais de melhora. Há 33 anos de plantão por ali com seu projeto de recuperação de manguezais, o biólogo Moscatelli acredita que elas saiam do sistema lagunar de Jacarepaguá, subam o Maciço da Tijuca e desçam o Rio dos Macacos, até enfim desembocar na Lagoa, onde passaram a viver e se tornaram atração. “Com a volta do mangue e a melhora da qualidade da água, tivemos um incremento da fauna”, comemora o ambientalista responsável por batizar a família de capivaras. Ele também já detectou o bem-vindo regresso de aves como a biguatinga, a garça-azul, a saracura-três-potes, o savacu-de-coroa e o colhereiro.
O celebrado retorno desses animais, no entanto, não veio sem trazer problemas ao ecossistema em restauração, causados sobretudo por hábitos humanos. “Com os frequentadores, vieram os pets, que, sem guias, passaram a entrar nos manguezais e a se estranhar com as capivaras. Quando seus tutores tentavam se meter, acabavam mordidos”, relata Moscatelli, lembrando que, apesar de dóceis, elas podem reagir quando provocadas. Há um ano, ele conseguiu o apoio da Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade, que forneceu insumos para a construção de cercas a fim de proteger os dois lados desta história nos três trechos mais frequentados pelas capis — o Parque dos Patins, a Foz do Rio dos Macacos e a Fonte da Saudade. E os acidentes praticamente cessaram. Mas, com o deslocamento dos roedores para outro ponto da Lagoa, perto do Parque da Catacumba, o enrosco só mudou de cenário e se agravou. Foi quando as capivaras começaram a ser encontradas mortas. “Essa é a ponta do iceberg da relação conflituosa que culturalmente nós, cariocas, temos com nossos recursos naturais”, constata o biólogo.
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A presença das capivaras em um cartão-postal como a Lagoa, patrimônio ambiental da cidade, é não apenas um símbolo de avanço na qualidade de vida naquelas bandas, como também um atrativo. “Seria simples pensar em removê-las, mas a ideia não é essa. Elas representam um ativo”, lembra Thiago Pampolha, vice-governador e secretário estadual do Ambiente e Sustentabilidade. Um investimento em novas cercas em áreas ainda não protegidas acaba de ser feito. A Smac, por sua vez, prepara placas informativas sobre a fauna silvestre e a flora local e está capacitando educadores ambientais para orientar os moradores que passeiam com seus cães. Eles terão o Parque da Catacumba como base e trabalharão em conjunto com a patrulha ambiental, que passa por lá pelo menos uma vez por semana. “Se todos cumprirem as regras, será possível uma boa convivência”, acredita Hélio Wanderlei, o subsecretário de Biodiversidade da Smac. Que assim seja.